segunda-feira, 25 de abril de 2016

O MEU 25 ABRIL


Eu tinha terminado o curso em Novembro e já era professor na linha. Em vários sítios. Em Fevereiro finalmente, chamaram-me para o serviço militar na Reserva Naval. Era um espaço reservado aos licenciados nas diferentes áreas; relativamente selectivo. Cerca de 200 de todas as licenciaturas possiveis.
Em EF ficamos 4. Sem cunhas possíveis. Tínhamos mesmo sido os melhores alunos do Curso. Eu, o Sacadura Cabral, o Carlos Fino e o Fernando Reis. 
Ora já a 16 de Março ouvíramos, de prevenção, fechados na Escola Naval, o "ensaio geral" pela BBC, sintonizada numa velha mas potente telefonia na Sala de Alunos. Excitação galopante. 
Lia-se o livro do Spinola, Portugal e o Futuro, como Biblia de alternativas a Marcelo e à sua bafienta "evolução na continuidade". O livro era uma espécie de guião de conquista da Democracia e fim da Guerra Colonial. 
Como já era casado, era-me permitido ir ficar em casa. Minha mulher tinha o nosso filho Pedro quase a nascer. Ia e vinha portanto, todos os dias da Rebelva, até Carcavelos, apanhar o comboio, e depois, do Cais Sodré ...palmilhava até ao Cais da Marinha. 
Nessa manhã já vinha, como habitualmente, com a farda vestida e não sabia de nada. Sinceramente. O comboio desta vez, porém ficou-se por Santos, e eu, contrariado, lá tive de palmilhar ainda mais esse bocado ate ao cais da Marinha, onde tomaria, enfim, a vedeta para a Escola Naval. 
Eram uns kms. No caminho, emocionadas, algumas pessoas anónimas davam-me abraços. Via os chaimites ameaçadores, dispostos ao longo da linha ferrea, a partir do mercado 24 julho. Caramba o q seria aquilo? Tropas prontas a tudo. O povo dizia-me emocionado: 
- Fizeram muito bem! Caramba já era tempo...
Eu percebi q aquilo ja ultrapassava quaisquer manobras possíveis. Toda a 24 Julho estava invadida por chaimites, e tropa, ali bem ao meu lado. Terreiro do Paço com 2 fragatas apontadas à baixa . E mais chaimites.
Lá palmilhei os 3 kms ate ao Cais da Marinha, onde se falava baixo, por grupos, mas todos discutindo apaixonadamente. Conspirativos. 
E eu na santa ignorância, - não tinha ouvido o Joaquim Furtado, por sinal ex aluno de meu pai... no RCP...- mas começava a ler nos comportamentos . Agitada discussão a bordo. Alegria, mas ainda apreensiva. Ninguém sabia aprofundadamente muito. Conjecturava-se - seria o Kaulza? seria o Spinola? Bichanavam-se informações, agitada e esperançosamente, mas sem certezas.
Chegados a Escola Naval la ficamos 2 dias fechados; sintonizando progressivamente a alegria. Mas a evidencia era avassaladora e felizmente do lado da coragem e da Democracia. 
Reunimos nervosíssimos na Sala de alunos e exigimos pelas 3 da tarde informações relevantes do Comando e uma definição clara de posições. Pelas 5 da tarde o Comando comunicou, dizendo q após consulta a todo o corpo de Oficiais e sargentos , ter aderido ao MFA. 
Começava, enfim, após quase meio século de opressão e "estado Novo" a balbuciar-se, ainda insegura e difícil, mas bela como uma manhã de Abril pode ser...- a sacrossanta palavra Liberdade!

sexta-feira, 22 de abril de 2016

o expresso pop chora de dor

recebo por mail o expresso diario.
Por vezes consulto para saber noticias, mas o tom leve e gratuito com se fazem hoje em dia os resumos da actualidade deixou de ser correspondente ao jornal de referencia, sério, imparcial e fiável q outrora existiu.
Já uma vez escrevi sobre isso, mas adiante.
Ok - morreu Prince. Era um ídolo pop. É noticia, sim senhor.
Mas a peça de abertura de hoje é de um servilismo prestamista quase endeusante e possidonio, dedicada ao grande enorme "prince", com um preito comovido, uma magoa perante tão extraordinária perda para a cultura mundial q me deixam boquiaberto.
Há excertos de tal prosa q acho enmolduraveis como peças únicas de inusitado desajuste.
o autor é MIGUEL CADETE, Diretor-Adjunto
e o titulo histórico é: "Prince ainda não morreu"
depois lemos, emocionados, entre outras coisas:
" não nos cabe lamentar as estrelas que se apagam e morrem pois não as conhecemos pessoalmente...só as choramos porque nos ajudaram a tomar um conhecimento de nós próprios que seria improvável sem a sua existência (!!!!!) ..foi uma força da natureza...etc...
depois fica uma enigmática conclusão de carácter geográfico-filosófico de compreensão confusa:
"Morreu ontem... eram 9h43 em Mineápolis (menos seis horas do que em Lisboa). Viveu toda a vida nessa cidade...apesar da notória diferença de fuso horário."
(Fico angustiado sem perceber q o motivo de tal dedicação nem q diferença e para onde? q local? Lisboa, Lagos, Paris, Viseu? N York, Bucelas, Moscovo? q eu saiba todos nós vivemos onde vivemos, apesar da notória diferença horária com algum sitio...)
Mas a confusão continua:
"Ontem, foi encontrado num elevador, inanimado, e declarado morto, depois de uma tentativa de reanimação, vinte minutos depois".
portanto, foi considerado morto depois de uma tentativa de reanimação 20 min depois da sua morte... confuso!...
continua o prestigiado Expresso: "Os órgãos de comunicação social que se dizem sérios confirmaram, depois, a informação. Prince morreu. Viva Prince."
Concluo q isto significará, portanto:
1 q afinal, há órgãos de Com. Social q não são sérios.
2 q esses provavelmente terão noticiado q estava vivo!...
mas adiante;
o articulista continua:
"Na rádio e na TV, comentadores, jornalistas, músicos, pessoas do meio, eu incluído, apressaram-se a balbuciar uma explicação, uma homenagem, um aforismo que resumisse a vida e, já agora, a morte de Prince. As redes sociais foram inundadas.
Gostamos todos das expressões "balbuciar" e "inundadas".
...
Continuando: "... foi...recuperado de uma sobredose. Terá recusado as recomendações dos médicos e três horas após ter chegado ao hospital, saiu. ...um dia depois surgiu a andar de bicicleta e durante uma festa terá pedido aos presentes para “guardarem as suas orações” para mais tarde.
Ontem, encerrou uma história muito maior do que a dos seus últimos dias, sem que nos fosse permitido conhecê-la. Prince era assim mesmo,..., ele podia escrever no seu epitáfio com toda a propriedade e mais alguma: “Vai viajante, e, se puderes, imita alguém como este, que se consumiu até ao fim pela causa da liberdade”.
Conclusão:- Salgueiro Maia, Ghandi, ... esqueçam. Este sim. Morreu supostamente de overdose e ficamos a saber, é um verdadeiro Herói pela causa da Liberdade.
Desculpem... não sei ... mas não será tudo isto... Ênfase exagerado? americanismo doentio? demasiada "popfilia" expressa"?
Nem o próprio Prince, por mº exótico e controverso q fosse, - e mesmo q a pessoas como eu não dissesse muito...- por tudo o q foi e conseguiu... não merecia tanta parvoíce.
Espantastico.

sábado, 9 de abril de 2016

A extraordinária historia de meu avô Manuel Miguel, heroi de La Lys

La Lys

Não faço uma ideia onde seja, nem que tamanho tenha o raio da terra.
Será sempre um nome, uma memória dividida, no seu sabor para mim.
Criança apenas, todos os dias nove de Abril, meu pai tinha a antipática rotina de me levar ao cemitério da aldeia, precisamente ao talhão dos combatentes da Grande Guerra. Em memória de meu avô.
E eu, contrariado, lá ia. Pela mão. Vestindo o meu fatinho de veludo azul.
Pequenino e tropeçando. Olhando de lado para aqueles mortos todos.
Um pesadelo garantido para meses a fio.
Não achava piada nenhuma àquilo, sinceramente. Tinha de se ter um ar sério.
Penteavam-me o cabelo de uma forma estúpida e o fato tinha costuras que arranhavam.
Logicamente. Aquilo era um castigo.
Mesmo que eu nada tivesse feito de errado, a cada dia nove de Abril, era sabido – visita cultural ao cemitério!
Restará acrescentar que se tratava de uma espécie de package de férias de Páscoa. Coisa que só viria a ser descoberta muito mais tarde, quando as pessoas arranjaram dinheiro e vocação para viajar.
Na realidade o meu pai fazia anos a dez, a sua mãe – e minha avó Emília – a onze. Porém, ao que parece, a data maior associada a meu avô não era - nunca seria - a data de seu aniversário, mas sim o dia nove de Abril. Data da Batalha de La Lys.
Dia em que – ao que se descobriria mais tarde, com grande orgulho da família – ele invadira, sozinho, com inaudita coragem, o poderoso exército alemão!

Eu explico.
Pobres homens de campo e gente humilde, mandámos para a guerra – convencidos que o velho prestígio guerreiro e conquistador lusitano de outrora, só por si, sobraria para amedrontar quaisquer inimigos – uns milhares de homens impreparados, mal armados, recrutados à pressa, meio esparvoados e sem saber ao que iam. Uma espingarda, um capacete e um cobertor …e ala, vamos para a Guerra! A pé.
Ora a guerra que lhes tinham contado era, com efeito, uma coisa distante. Uma história romanesca. Uma cruzada pelo bem e pela paz, a que urgia aderir, ao que parece, para mais completa glória da Nação.
Cheios de Afonsos Henriques e Aljubarrotas na memória, lá foram.
Aquilo eram favas contadas. Assim que chegassem lá os portugueses, o resto do pessoal acobardava-se todo e pronto. Fugiam. Estava resolvido.
Guerra?! Aquilo era coisa de jornais, para quem lesse tal coisa.
Nada de grave. Romance. Uma autêntica passeata. Conversa de jornais e da rádio. Se já houvesse telefonia, porque, a bem dizer, a TSF convencional ainda nem balbuciava os primeiros sinais!...
Havia, isso sim, emissões em morse, que eram captadas e transmitidas aos centros militares por pessoal das Transmissões, e o caos no sector era geral.
Telexes descreviam, desse modo lento e precário, o evoluir das coisas.
Quantas vezes interceptados pela contra-informação inimiga e alterados para quebrar o moral do opositor, num mar de dúvidas e mentiras, em que todos os exércitos navegavam, sem solução alternativa, nem certezas.
Alias, os próprios generais se apercebiam de que ganharia a Guerra nessa altura quem ganhasse a guerra das transmissões. A telegrafia sem fios dava os seus primeiros passos, ainda com vários sistemas, todos eles bem incompletos, apesar de Marconi já se revelar o melhor e mais activo a vender o seu invento e a lutar pela sua implementação.
Era necessário activar as toscas maquinetas receptoras, com a chamada luminária ou tríodo TM. E para transmitir era necessário, ou estar em alcance visual e fazer comunicação semafórica, ou passar fio até à zona desejada, para que o telégrafo pudesse trabalhar. E tornavam-se necessários, obviamente, postes suportadores pelo caminho, entre os pontos desejados para comunicação das notícias.
Postes cavados no terreno minado. E tudo ainda transmitido à manivelada.
Deste modo, do que chegava, do que se recebia e da sua controversa utilidade, sobrava uma imensa desconfiança de que o inimigo já tivesse ouvido a conversa toda; ou que o morse do parceiro fosse mais rápido que o do nosso operador.
Ou, enfim, que os carregadores de postes fizessem uma grave de zelo.
Era, com efeito, difícil a colocação – ainda por cima sob fogo inimigo – dos paus pesadíssimos que haviam de endireitar-se enfiados em covas imensas, cavadas a braço mal alimentado, por homens com uma coragem sem espingarda, apenas armados de cordas e fios e pás de valar.
Tudo isto, enquanto, supostamente, os companheiros os protegiam da sua invulgarmente braçal e pouco lembrada maneira de participar na guerra. Mas tão importante e fulcral.
 Pobre guerra, com efeito, a destes moços; heróis – sem lhes reconhecerem qualquer heroísmo – de picaretas e pás na mão, num dia a dia estúpido, esgotante e perigosamente igual.

Conclua-se já agora, que a cada dia se avançava um pouco na descoberta de novos processos de tornar todo o processo de transmissão mais veloz e aperfeiçoado. Mas só no fim do conflito a TSF, pela primeira vez convertida em radiotelefonia, transmitiria a voz humana, num milagre sonhado há muito tempo por Marconi.
Demasiado tarde para estes heróis do código morse e do pau de fio às costas.
Sabia-se assim, mais ou menos, o que a informação permitia que se soubesse – que era pouco. E compreendia-se de tudo aquilo ainda menos que pouco, para não dizer nada.

Ora bem. A função de meu avô era montar fio.
Pobre herói de braço forte e corpulento, ribatejano rotundo e avantajado. O pessoal da sua especialidade andava em grupo, mas a fome com que os portugueses andavam, fazia com que os percursos nem sempre fosse os mais directos.
E lá haveria uma quinta que ficava sem galinhas, a outra sem uns ovos, outra ainda sem alguma fruta...
Se o inimigo atacava, havia que recolher. De novo se fariam ao campo, mais tarde, na esperança de não terem maus encontros. Outra vez cavar buracos e passar fio. Outra vez a fome, o abandono, o frio, a miséria, uma desorganização total.
Para onde é agora? Por onde? E como chegamos lá?
A cadeia de comando caótica, por sua vez, distante, dispersa, raras vezes concordante, debaixo de fogo. Também eles sem saber… Gente de várias nações sem se entender. Enfim, facilmente se imagina e se calcula a confusão…

Acontece que o meu avô era um homem destemido, desbragado, positivo. Com um copito era capaz de tudo; até de trepar pau nas fuças do inimigo.
E um belo dia, ao que parece, o nevoeiro fez-lhe uma partida.
Ficou lá no alto do pau, sózinho e começou a chamar pelos camaradas mas em vão. O pessoal tinha todo largado o material e fugido, sabe-se lá para onde.
Que se passaria?- pensou ele, já aflito.
Entretanto, um barulho cavo e surdo se ouvia cada vez mais perto. O exército inimigo avançava, passo a passo, destruidor e temível.
E quando pensou em descer do pau, era demasiado tarde. Eles aí estavam!
O meu avô ficou transido e rezou à virgem, aos santos todos. Encomendou a alma sete vezes a Deus e preparou-se para levar um tiro, talvez muitos, e cair como um tordo apanhado em galho de árvore.
Mas o nevoeiro denso da velha Flandres, dessa vez, ia ser seu amigo.
Ninguém o viu!
O exército alemão passou, passou, passou, demorou horas a passar… e o herói lá se mantinha suspenso. Com o coração a bater mais que as máquinas de guerra cá em baixo, o peito num estertor, as pernas já sem sentir nada, as mãos em desespero agarradas ao pau de fio, o corpo dormente do arnês. O frio e o nevoeiro a enregelarem os ossos e a alma. A espera da morte a qualquer momento. Na vaga incerteza de uma improvável sorte que o salvasse.
Não os via. A neblina era espessa como leite. Pressentia-os.
Pareciam falar uma lingua estranhíssima, arranhada e gutural. E soavam mais jovens que supunha. Rapazitos seriam, gritando muito uns com os outros. Infantaria. Um barulho ensurdecedor de granadas explodindo e de gritos por todo o lado.
Por um momento, pararam junto ao poste. Discutiam-lhe, decerto, a sorte. Mas os fios largados pelo chão denunciavam que não tinha nunca chegado a ser útil e tornavam-no manifestamente inofensivo. Era inútil perder tempo a derrubar aquilo pois não servia para nada ao inimigo. Era apenas um pau levantado no chão. À cautela atiraram uma rajada para o alto oculto no densíssimo nevoeiro.
O pobre Manel aí, confessemos, teve sorte. Nada lhe acertou. As balas rasaram-lhe o corpo, mais nada. E mordeu-se todo com medo de morrer. Mas para sua muita sorte os inimigos desistiram. Todo o material largado no chão – fio, pás, enxadas…- indicava a fuga. E havia que avançar, avançar sempre.
- Weiter gehen!
Isso mesmo. Adiante.
E lá seguiram.

Depois vieram os carros, e o chão tremia debaixo dos seus pés. Perdão. O chão tremia; mas ele já só mal o podia sentir, agarrado que continuava ao grosso madeiro, que vibrava a cada rodado que passava. Porque os pés, suspensos e frios, já tinham congelado na espera.
Demoraram uma hora a passar. Ou mais. Seriam duas. Ele nunca soube.
Depois, devagar, os gritos e estampidos foram-se perdendo na distância.
Seria possível? Depois de deixar passsar uma margem de segurança sem ouvir mais nada, o seu coração ouvia-se mais alto que o silêncio.
O nevoeiro não levantava. A cinco metros já ninguém via nada. Só os postes tinham dez ou mais de altura. Ele próprio não via o chão.
Deu ainda mais uma e outra margem de segurança. A tremer todo, lá se arriscou a descer. Devagar, espreitando sempre.
O exército alemão passara.
Havia no ar um cheiro imenso a pólvora e a morte.
Estava completamente só.
Exausto. Borrado de medo. Enregelado. Faminto. A tremer. Mas vivo.

Acontece que na aldeia nada se sabia. E se, de vez em quando, aparecia uma carta E, normalmente, para desgraça da família, eram sempre más notícias. Assim, calhou, em certo dia, a minha avó receber do Ministério do Exército – ou da Guerra, como então se chamava – a sibilina e curva notícia.
O seu marido fora dado como desaparecido em combate. Era assim que se dizia a morte.
O choque foi brutal. Chorou-se a desgraça e receou-se pela vida futura. O pai e o sustento iam faltar. Como sobreviver, pobre mulher, viúva, e com dois filhos para sustentar?
Pos-se luto e carpiram-se noites de uma tristeza profunda. Uma mágoa, assim, sem ter corpo para funeral é uma mágoa especialmente funda, estúpida e perplexa. Não se percebe como terminou tudo e, no entanto, tudo terminou. Lá longe, sem se saber como, nem porquê.
Aliás há um eufemismo imenso na terminologia militar, quando trata da morte de seus filhos. Se não há corpo, o que se regista estatisticamente é um desaparecimento. Não conta como morte. É uma sensação esquisita.
- Que é feito de teu pai? …De teu irmão? De teu filho? Morreu?
- Não sei. Desapareceu!
Estranha e violenta resposta, a que teriam de ensinar aos filhos.
Junto de um amigo sargento, cujo conhecia um capitão em Lisboa, toda a família tentou indagar novas do pobre Manuel Miguel. Nada. Tinha sido apanhado num ataque. Esmagado pela frente inimiga. Desaparecido.
Mas afinal não eram todos eles “desaparecidos em combate” na sua maioria? Aquilo foi, relembre-se, a maior chacina humana sofrida pelo exército português depois de Alcácer Quibir! Uma razia total. Um país inteiro de luto.

A mãe Anita nunca desistiu. Nunca quis acreditar.
Prometeu a Nossa Senhora ir todos os dias à Igreja Velha, nem que fosse entrar e sair, se o seu filho voltasse. E só Deus sabia como arriscava, pois o seu marido João Ralhão não era homem para brincadeiras e tanpouco dado a assuntos clericais.
Enganou-o toda a vida com uma caixa de fósforos, sempre novinha, que trazia escondida, num bolso oculto duma das muitas saias que então se usavam.
Era o pretexto, se ele desse conta de sua falta. E ele sabia.
- Onde andaste, mulher dum raio? - Perguntava ele, falsamente furibundo.
- Olha, homem, fui comprar fósforos, que já não tinha… – respondia ela, prontamente. Era mentira; e ele sabia.
Morreram os dois com uma semana de intervalo. O coração do velho João não aguentou mais que esse tempo de saudades e morreu de fastio pelo Mundo e amor de morte pela sua mulher.
História bonita e verdadeira de meu sangue, acontecida bem antes de mim.

Mas voltemos à história de seu filho, evoluindo, sem dicionário, em pátria alheia.
Passava o tempo. O bom do Manuel, sem falar a língua e com medo dos ocupantes, arrastou-se semanas pela França ocupada, numa vida furtiva e vadia, sem saber onde estava, nem ver parceiros.
Voltar para trás, nem pensar. Ia dar de caras com os alemães. Era a morte certa.
Aos poucos, vindos daqui e dali, alguns outros colegas, todos famintos e esfarrapados, começaram a juntar-se e, em dois meses, um grupo de insólitos soldados, cuja roupa rota e suja apenas muito longinquamente se assemelhava já a um uniforme militar, constituía um triste espectáculo de pobreza e mendicidade.
Alguns franceses, embora muito a medo, iam sustentando o pobre grupo de maltrapilhos. Por vezes trabalhavam pela comida em fazendas e quintas. Os olhos encovados e o aspecto denunciavam-nos a qualquer olhar mais atento.
Foi isso que aconteceu, largos meses depois, quando alguém foi avisar representantes do exército português de que andariam homens extraviados em tal parte.
Regressaram então aos respectivos Batalhões, campos de resistência que eram uma espécie de babilónia de línguas e culturas. Os portugueses que haviam sobrado de tamanha má sorte eram, apesar de tudo, os mais afortunados, de entre tantos milhares de pobres compatriotas que morreram, sem saber bem por que causa combatiam…
Eram sobreviventes. Estropiados, encolhidos, desorientados, doentes e feridos no corpo e na alma e que, finalmente, iam sendo, aos poucos, repatriados para casa.
O fracasso na consciência, a fome no corpo, a vergonha na derrota e a morte na memória.
….
Quando chegou à terra, o meu avô estava magro como um cão vadio.
Era, por outro lado, um morto vivo, com tudo o que a desagradável sensação lhe podia trazer.
- Oh Manel! Oh Homem! Mas então afinal tu não tinhas morrido?! – Diziam.
Mas a alegria de voltar foi tamanha que o morto vivo em breve recuperou, com um tratamento intensivo à base de matanças de porco sucessivas, celebrações de vida, enchidos de boa curtimenta, tinto de Alcorochel, sopas de fressura, toucinhas de colorau e avantajadas migas.
O meu querido avô – Manuel Miguel Chora.
De quem herdei, ao que parece, as mãos, o vigor e a rotundidade. …Promovido a primeiro-cabo, por serviços heróicos ao Exército Português na Grande Guerra de 1914-18!...

O tal herói que, um dia – sem querer, nem saber bem como... – “Invadiu” sozinho o exército inimigo, na célebre Batalha de La Lys, num dia 9 de Abril de que nunca perderei memória! E por ser tudo verdade aqui se passa, embora tardio, o competente Auto.

Seu neto, a bem da Nação,

PB

segunda-feira, 4 de abril de 2016

histórias do panamá

Os ricos escondem património? Mas olha q espanto imenso!
Como se não soubéssemos! Se há tantos milénios q é assim... Como se fosse surpresa! 
Como se não fosse o vil cifrão o mais aconchegante e procurado símbolo do planeta para todos eles. 
Ainda por cima, escondem cuidada e intrincadamente, por um farisaico pudor, seus biliões, para pretenderem - à luz do publico conhecimento - uma aura de honesto labor e seriedade. 
Mas à mulher de César não pertence apenas ser séria; também pertence parece-lo. 
E hoje já não se gasta disso. Apenas se finge.
Ainda por cima, desculpem lá, serão abastados mas tambem imprudentes, estúpidos, negligentes e um pouco ingénuos.
Como se os grande ricos não devessem sempre ser discretos e cautelares! Com efeito, só os ricos parvalhões, exibidos e incautos, se rebolam nas revistas e deliciam de vaidade.
Olhem só como sou belo e poderoso!
O que se tem, ou não, houvera sempre de ser coisa discreta, no domínio da arte, da amizade, do conhecimento, da saúde, do gosto e da beleza. Coisas da intimidade, quase como segredos da pele, indizíveis relicários de um bem estar quanto baste. 
Pouco mais; ornado a espaços de algum uso, sim senhor, em viagens, cultura, conforto e propriedade; mas com bem mais recomendável recato, parcimónia, leveza e contenção. Humanidade, talvez. Modéstia.
Eu, por exemplo - com a minha incomensurável fortuna, acumulada num acervo de vida notável e de emoções sem comparação...- já tentei esconder todo o meu património num qualquer panamá. 
E juro q não consegui. 
Veio vento da serra e voou tudo. Só em abraços tinha o mundo.
Era muito superior aos biliões todos desta gente. Não cabia.