Marcaram
o jantar de cerimónia, luxo e compromisso. A República alastrara como ideia e
controlava o País. Havia que lutar contra tamanha e tão estrangeirada
escumalha.
Famílias
antigas e prestigiadas do Alto Ribatejo, - nos limites de uma Beira Litoral
ainda longe do mar - possuíam, com efeito, extensas propriedades bravias e sem
aproveitamento. Eram donos, entre ambas famílias, de mais de metade da Serra
d’Aire; mas no mais belo e inútil de suas paisagens penhascosas e rudes, de
terra vermelha e barrenta e pedra calcária. Pedra em tal quantidade que não se
conseguia arar uma jeira de jeito sem embotar o ferro nelas ou que uma junta de
bois não tropeçasse.
Havia,
com efeito, de se fazer qualquer coisa. Rentabilizar tais perdidos sítios,
recebidos de heranças de família e afinal, sem rendimento algum. Algo que
atraísse gente para ali. Algo que pusesse tais áridas fazendas com valor e
procura.
-
Mas quê? – E cofiavam os fartos bigodes de lavradores abastados e donos da
terra.
-
Ah! Senhores, mas que haveria de ser?
O
jantar decorreu entre baixelas de prata e criadagem muda, servindo. Elas de colarinhos
engomados e avental rendado; eles de libré. No fim do solene e amigável repasto
os homens afastaram-se um pouco, acendendo os charutos e vieram os sais para as
Senhoras. Foi quando Dona Perpétua Simões de Andrade (nome alterado por razão religiosamente
recomendável) suspirou e disse, entre a ironia e o desalento:
-
“Pôr aqueles matos a render? Ai, minha
Nossa Senhora! Acho que era preciso um milagre!” – e fungou elegantemente
um pouco de rapé. E Dona Genoveva Tavares, embora um pouco obnubilada pelo
ponche, aquiesceu, entre o arroto e a sonolência.
Num
relâmpago, o Morgado Tavares olhou o Dr. Simões de Andrade, sobrecujo devotado
esposo da sobrecuja chorosa dama.
Via-se
que uma ideia lhe rebentara no crânio, como um estalo de inteligência.
-
Um milagre! Caramba! Era isso mesmo! Mais
que isso - uma fábrica de milagres!
Todos
se debruçaram, alvoroçados. Um entusiasmo imenso se instalou na sala, antes
soturna e pesada. E fizeram-se ao trabalho. Secretos preparos antecederam os
contactos, escolhas e arranjos necessários a tão rocambolesca encenação.
O
guião foi pensado e melhor combinado.
Sobrava
um problema. Depois de escolhidos os protagonistas havia que anulá-los.
Fazê-los desaparecer ou enclausurá-los. Para que nunca se percebesse o grau de
intrujice, e a versão e fama das visões
nunca fosse posta em causa.
Assim
se cumpriu a história. Por artes maiores de menos clareza, apelos ao sacrifício
e à mortificação, a pneumónica levou a uns e a clausura eterna viria a ser o
destino da que sobrou. E as criaturas contaram tudo direitinho, na sua fé e
candura infanto-pastoril.
Outro problema era o Bispo, provavelmente seduzido pelos republicanos, sabe-se lá. Reticente, o ingrato. E o próprio Patriarca, retorcendo o nariz.
Enfim.
A história, embora com encenação amadora, intermitente e hesitante, acabou por
pegar. O Estado e a Igreja acabariam por aceitar a utilidade de tal culto. A
utilidade e sobretudo os dividendos.
Mais.
Acrescentariam todos os ingredientes do mistério. Segredos. Milagres.
Peregrinações. Liturgias bonitas. A dignidade dos templos e referencia
histórica, – como se fosse um facto tão evidente como Mem Ramires haver ajudado
à conquista de Santarém. Tendência para a partilha confusa do divino com o
êxito bélico nunca nos faltou, desde que Afonso Henriques tivera as tais
visões, antes de derrotar cinco reis mouros em Ourique.
Batota…acho
eu, que não sou para aqui chamado. Assim era fácil.
E
mesmo apócrifos e tergiversos, tais nobres e ostentados mistérios, entre a
tragédia de uns, o amadorismo da montagem e dos protagonistas e o lucro
evidente de outros, lá enredaram o Mundo.
Potenciando
o saber do que se deseja para nosso próprio acreditar. Porque as nossas
fraquezas sempre comandaram a nossa capacidade de temer. Alguém de superior que
interceda por nós, é uma espécie de cunha no Além. Dá sempre jeito. Quem não
tem medo da doença e da morte?
Saibamos
pois aprender a acreditar. E ignoremos as incongruências. Tenhamos Fé.
Sim.
Que linguagem era aquela tão metafórica e cuneiforme que ninguém entendia e um
dos pobres nem sequer ouvia? Que figura existia afinal? Que luz emanava, e de
onde? Em cima duma azinheira? A mãe de Deus, aqui?! Mas ela não estava em toda
a parte, como pertence e é uso na sua ilustre e poderosa família? Porque não
via a multidão absolutamente nada e apenas as febris crianças continuavam a
clamar que sim senhor, estava ali uma Senhora de branco em cima duma azinheira?
E
porquê branco? Eu, por exemplo, adoro amarelo!
Quero
uma Virgem de amarelo, faz favor. Mesmo que seja a castíssima mãe de Deus, que raio,
uma pessoa pode vestir cores bonitas! Como alertava Ela para os perigos do
comunismo, se as aparições são em Maio de 1917 e a revolução bolchevique só
seria em Outubro do mesmo ano? Como saber que premonições afectariam um Papa, e
qual deles? E já agora, em que ano futuro a saber?
Cheira
a Luís de Matos, em
baratinho. E com um casting de Amadores da Berlenga de Baixo.
Mas nós precisamos disso.
Mais
importante que a Fé é a necessidade de precisar de Fé.
Sempre
que passo a Fátima, no meio daquelas lojas de vendilhões do Templo, com o
negócio da cera eternamente reciclada, com os bracinhos e as perninhas e as Nossas Senhorinhas fluorescentes, sinto
no ar, de certo modo, um kitsch
lamentável. Ex-líbris de um povo inculto e culturalmente pouco interessado no
debate teosófico.
É
isso. Não expliquem nada. Acreditem. E chega.
E
como o negócio alastrou e é hoje mundial, caramba! Quem sou eu - apesar de
local, vizinho, informado e conhecedor da história - contra o Mundo Católico
inteiro, repleto dos seus hectoplasmas de inabalável Fé.
Enchamos
então os olhos de arrepio e lágrimas ateias, ao vermos tanto acreditar.
Como
eu gostava de estar convosco, almas simples e não perguntativas! Como eu
gostaria de rezar ave marias descalço
e acreditar que isso me resolvia todos os problemas!
Como
é lindo ver uns milhares com velas, sem pensar no negócio. Como é lindo ver o
acenar da multidão no eterno adeus!
Parabéns
aos encenadores que ao longo dos anos têm melhorado o evento. Que lindas são as
capas negras dos senhores da Opus Dei. Que dignidade e que perfis!
Que
sinceras e belas são as lágrimas, na pele enrugada de velhices acreditantes,
fotogénicas e puras. Juro que não brinco. A sério. Que pena tenho de ser
racional!
Como
me comove o vosso tão simples e elementar acto maior de acreditar!
Ficará
por ali alguma coisa? Sempre que passo a Fátima abro a janela do carro e aspiro
profundamente. Abro as mãos, tentando alcançar alguma tonelada de quilo-fé no
agarrar do ar. Em vão. O acreditar é uma força incontrolável e telúrica. Reservada
a gente que não quer saber da história de duas famílias ricas de Torres Novas e
Ourém, e dos seus secretos e perversos interesses fundiários hoje plenamente
satisfeitos.
Calculem.
Naquela noite sem saber como, construíram, - a partir de um incauto e inocente
desabafo, à sobremesa de um jantar de gala, nos alvores do século vinte - uma
cidade.
E
uma fé para o Mundo.
E
eu eternamente condenado às portas da perdição, por conhecer a história e ter
nascido ali ao pé da porta. Senhor
perdoai-me, porque eu sei como se faz!
E
se possível, bafeja-me com a tua proverbial tolerância. Preciso
muito, podes crer. Sê generoso. Sou assim, eu sei, mas não faço por mal,
acredita.
Cumprimentos
cá da terra, humildemente,
Este
teu servo,
António
Pedro
In
“Contos Anarquistas”, Ed Temas Originais, 2009