sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Srª da Agonia

Com as eleições das terras entramos no frenesi da culpa e da desculpa.
O fim do tempo, sem ter tido tempo para preparar o tempo.
A obra - cinquenta vezes prometida, devida e subsidiada mas que foi desviada por... compromissos que, se colocaram à frente de; mais imperiosos porque, comandados por, revelando interesses que, hierarquias de, conveniências por, empresas que, prioridades urgentes, calendário assim. E nada aconteceu.
Mas desta vez... caramba! Logo no primeiro mês. Prometo!
Nao sei quê de dez réis de paciência para ter de ouvir o povo; ai!... ir almoçar ao Xico, ao Zé, ao Toino, ao Manel, à Ana, à Rita, ao Couve e ao Bacalhau. A Brejenjas, ao Massacouco, ao Carreiro das Negras, ao Porto dos Anzóis, que fica lá tao longe e nao tem estrada sequer...
Que raiva. Que cansaço. Uma chatice, o povo. Uma pessoa ter de depender desta gente. Ter de dividir a campanha a tempo de prometer o tapete novo para o estádio, o ginásio publico no jardim para os tarados da musculação, o parque dos poetas para a curva do rio, o anfiteatro para os artistas e a escola nova para as criancinhas. O passadiço para os ciclistas. O parque para as avezinhas - não sei quê ecologia, porque não sei quê, mas convém... Chiça.
Nao esquecer arranjar a ponte que pode cair e ir ao futebol com cachecol ao pescoço. Um ar popular. sardinhas e vinho tinto.
Farturas. Boa ideia. - Muitas farturas.
Nao esquecer afagar e beijar 100 criancinhas/dia sff, a propósito. Prometer o museu já 30 vezes prometido, garantir baixar o imi, as campas, o preço da nabiça e do tomate. A burocracia municipal, o preço do melão. O mau cheiro das ribeiras. Melhorar o mercado e pôr as varinas todas finas de balandrau de seda e lantejoula.
A feira dos queijos e caracóis precisa de melhor animação convida-se o Gervásio da gaita, prometido. O chafariz tem de ser arranjado e pintado, prometido, A rua de cima devia ser em baixo e a de baixo devia ir para trás. prometido. Um aeroporto para cada cidade, um presidente para cada ideia, uma piscina para cada bairro. prometido. Uma ideia para cada parede rua beco. Botas e jeans para visitar os pobres, mas podem-me chamar Salomé.
Eu estou a olhar os chouriços e o caldo verde, ouço com atenção as explicações culinárias da Maria dos tachos, mas vou espreitando pelo rabo do olho se o cameraman me está a filmar e tenho de improvisar qqr coisa sobre a carestia, a habitação, o passadiço pedonal, o resultado ideal, o reflexo das freguesias na governação e a influencia do tempo no futebol de praia e os reflexos das missas na afluência às urnas.
Carnaval completo na feira do improviso e da promessa. Uma mao cheia de nada, outra de coisa nenhuma. Olha do que eu me livrei. Beijos e apertos.
Os meus calos e padecências já nao aguentavam isto.
Sim. Eu sei. Estou a ser injusto.
Haja homens e mulheres de bem a aguentar a parada, para ocupar os sítios certos e merecidos. Apareçam. Todos.
Acredito na boa generosidade de muitos candidatos genuinamente interessados em fazer o melhor para a sua Terra. Bem Vindos do fundo do coração.
Mas nao lhes invejo a tarefa. É preciso vontade, coragem, alma, saúde e temperamento para isto.
Têm de enfrentar, queiram ou não, esta feira insana, apalhaçada, cruel e quantas vezes, injusta.
E para cúmulo, sentir o peso dos olhares da vizinhança, na tal 2ª fª a seguir às urnas. 
Uma espécie de dia de  finados 
fulgores 
Para mim, é o carnaval da promessa garantida;
- a cansativa feira da Agonia.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Os donos do Milagre

Os senhores de Tavares e de Andrade (nomes alterados por razões religiosamente compreensíveis) olharam-se e entenderam-se sem palavras. Estava combinado.
Marcaram o jantar de cerimónia, luxo e compromisso. A República alastrara como ideia e controlava o País. Havia que lutar contra tamanha e tão estrangeirada escumalha.
Famílias antigas e prestigiadas do Alto Ribatejo, - nos limites de uma Beira Litoral ainda longe do mar - possuíam, com efeito, extensas propriedades bravias e sem aproveitamento. Eram donos, entre ambas famílias, de mais de metade da Serra d’Aire; mas no mais belo e inútil de suas paisagens penhascosas e rudes, de terra vermelha e barrenta e pedra calcária. Pedra em tal quantidade que não se conseguia arar uma jeira de jeito sem embotar o ferro nelas ou que uma junta de bois não tropeçasse.
Havia, com efeito, de se fazer qualquer coisa. Rentabilizar tais perdidos sítios, recebidos de heranças de família e afinal, sem rendimento algum. Algo que atraísse gente para ali. Algo que pusesse tais áridas fazendas com valor e procura.
- Mas quê? – E cofiavam os fartos bigodes de lavradores abastados e donos da terra.
- Ah! Senhores, mas que haveria de ser?
O jantar decorreu entre baixelas de prata e criadagem muda, servindo. Elas de colarinhos engomados e avental rendado; eles de libré. No fim do solene e amigável repasto os homens afastaram-se um pouco, acendendo os charutos e vieram os sais para as Senhoras. Foi quando Dona Perpétua Simões de Andrade (nome alterado por razão religiosamente recomendável) suspirou e disse, entre a ironia e o desalento:
- “Pôr aqueles matos a render? Ai, minha Nossa Senhora! Acho que era preciso um milagre!” – e fungou elegantemente um pouco de rapé. E Dona Genoveva Tavares, embora um pouco obnubilada pelo ponche, aquiesceu, entre o arroto e a sonolência.
Num relâmpago, o Morgado Tavares olhou o Dr. Simões de Andrade, sobrecujo devotado esposo da sobrecuja chorosa dama.
Via-se que uma ideia lhe rebentara no crânio, como um estalo de inteligência.
- Um milagre! Caramba! Era isso mesmo! Mais que isso - uma fábrica de milagres!
Todos se debruçaram, alvoroçados. Um entusiasmo imenso se instalou na sala, antes soturna e pesada. E fizeram-se ao trabalho. Secretos preparos antecederam os contactos, escolhas e arranjos necessários a tão rocambolesca encenação.
O guião foi pensado e melhor combinado.
Sobrava um problema. Depois de escolhidos os protagonistas havia que anulá-los. Fazê-los desaparecer ou enclausurá-los. Para que nunca se percebesse o grau de intrujice, e a versão e fama das visões nunca fosse posta em causa.
Assim se cumpriu a história. Por artes maiores de menos clareza, apelos ao sacrifício e à mortificação, a pneumónica levou a uns e a clausura eterna viria a ser o destino da que sobrou. E as criaturas contaram tudo direitinho, na sua fé e candura infanto-pastoril.

Outro problema era o Bispo, provavelmente seduzido pelos republicanos, sabe-se lá. Reticente, o ingrato. E o próprio Patriarca, retorcendo o nariz.
Enfim. A história, embora com encenação amadora, intermitente e hesitante, acabou por pegar. O Estado e a Igreja acabariam por aceitar a utilidade de tal culto. A utilidade e sobretudo os dividendos.
Mais. Acrescentariam todos os ingredientes do mistério. Segredos. Milagres. Peregrinações. Liturgias bonitas. A dignidade dos templos e referencia histórica, – como se fosse um facto tão evidente como Mem Ramires haver ajudado à conquista de Santarém. Tendência para a partilha confusa do divino com o êxito bélico nunca nos faltou, desde que Afonso Henriques tivera as tais visões, antes de derrotar cinco reis mouros em Ourique.
Batota…acho eu, que não sou para aqui chamado. Assim era fácil.
E mesmo apócrifos e tergiversos, tais nobres e ostentados mistérios, entre a tragédia de uns, o amadorismo da montagem e dos protagonistas e o lucro evidente de outros, lá enredaram o Mundo.
Potenciando o saber do que se deseja para nosso próprio acreditar. Porque as nossas fraquezas sempre comandaram a nossa capacidade de temer. Alguém de superior que interceda por nós, é uma espécie de cunha no Além. Dá sempre jeito. Quem não tem medo da doença e da morte?
Saibamos pois aprender a acreditar. E ignoremos as incongruências. Tenhamos Fé.
Sim. Que linguagem era aquela tão metafórica e cuneiforme que ninguém entendia e um dos pobres nem sequer ouvia? Que figura existia afinal? Que luz emanava, e de onde? Em cima duma azinheira? A mãe de Deus, aqui?! Mas ela não estava em toda a parte, como pertence e é uso na sua ilustre e poderosa família? Porque não via a multidão absolutamente nada e apenas as febris crianças continuavam a clamar que sim senhor, estava ali uma Senhora de branco em cima duma azinheira?
E porquê branco? Eu, por exemplo, adoro amarelo!
Quero uma Virgem de amarelo, faz favor. Mesmo que seja a castíssima mãe de Deus, que raio, uma pessoa pode vestir cores bonitas! Como alertava Ela para os perigos do comunismo, se as aparições são em Maio de 1917 e a revolução bolchevique só seria em Outubro do mesmo ano? Como saber que premonições afectariam um Papa, e qual deles? E já agora, em que ano futuro a saber?
Cheira a Luís de Matos, em baratinho. E com um casting de Amadores da Berlenga de Baixo. Mas nós precisamos disso.
Mais importante que a Fé é a necessidade de precisar de Fé.
Sempre que passo a Fátima, no meio daquelas lojas de vendilhões do Templo, com o negócio da cera eternamente reciclada, com os bracinhos e as perninhas e as Nossas Senhorinhas fluorescentes, sinto no ar, de certo modo, um kitsch lamentável. Ex-líbris de um povo inculto e culturalmente pouco interessado no debate teosófico.
É isso. Não expliquem nada. Acreditem. E chega.
E como o negócio alastrou e é hoje mundial, caramba! Quem sou eu - apesar de local, vizinho, informado e conhecedor da história - contra o Mundo Católico inteiro, repleto dos seus hectoplasmas de inabalável Fé.
Enchamos então os olhos de arrepio e lágrimas ateias, ao vermos tanto acreditar.
Como eu gostava de estar convosco, almas simples e não perguntativas! Como eu gostaria de rezar ave marias descalço e acreditar que isso me resolvia todos os problemas!
Como é lindo ver uns milhares com velas, sem pensar no negócio. Como é lindo ver o acenar da multidão no eterno adeus!
Parabéns aos encenadores que ao longo dos anos têm melhorado o evento. Que lindas são as capas negras dos senhores da Opus Dei. Que dignidade e que perfis!
Que sinceras e belas são as lágrimas, na pele enrugada de velhices acreditantes, fotogénicas e puras. Juro que não brinco. A sério. Que pena tenho de ser racional!
Como me comove o vosso tão simples e elementar acto maior de acreditar!
Ficará por ali alguma coisa? Sempre que passo a Fátima abro a janela do carro e aspiro profundamente. Abro as mãos, tentando alcançar alguma tonelada de quilo-fé no agarrar do ar. Em vão. O acreditar é uma força incontrolável e telúrica. Reservada a gente que não quer saber da história de duas famílias ricas de Torres Novas e Ourém, e dos seus secretos e perversos interesses fundiários hoje plenamente satisfeitos.
Calculem. Naquela noite sem saber como, construíram, - a partir de um incauto e inocente desabafo, à sobremesa de um jantar de gala, nos alvores do século vinte - uma cidade.
E uma fé para o Mundo.
E eu eternamente condenado às portas da perdição, por conhecer a história e ter nascido ali ao pé da porta. Senhor perdoai-me, porque eu sei como se faz!
E se possível, bafeja-me com a tua proverbial tolerância. Preciso muito, podes crer. Sê generoso. Sou assim, eu sei, mas não faço por mal, acredita.
Cumprimentos cá da terra, humildemente,
Este teu servo,

António Pedro
In “Contos Anarquistas”, Ed Temas Originais, 2009

sábado, 29 de abril de 2017

os novos bimbos da influencia

Dou por mim saudosista e conservador? Nao sei, nem me preocupa mº etiquetar o q sinto. Vejamos.
Informar e, consequentemente, ajudar a "formar" opinião publica é uma missão de enorme responsabilidade. A ter de ser exercida c a autoridade de um conhecimento acima da média.
:) - Curiosa coincidência usarmos ainda esta expressão... Pois era precisamente uns "media acima da média" q desejaríamos)
O jornalismo deveria sempre ser exercido por pessoas de sólida formação moral, incorruptíveis, superiormente informadas, com um domínio claro e fluente da língua, capacidade de absorção rápida e transmissão correcta de ideias, opinião abalizada, profunda abrangência de conhecimento nas respectivas áreas de especialização etc.
Hoje, desculpem, mas não é. Reina a bagunça, o clientismo, o nepotismo, o jogo de cintura e de influencia. A mediocridade. A bajulação. Um nojo.
Li e respeitei a seu tempo Augusto Castro, Joaquim Manso, Norberto Lopes, Manuela Azevedo, Leitao de Barros, Fº Assis Pacheco, Mª Antª Palla, Jacinto Baptista, Joaquim Letria, Cândido Oliveira, Fº Soromenho, João Pª da Rosa, C. Pinto Coelho, Ruella Ramos - sei lá, assim de repente, desarrumados na ordem, entre tantos outros...
Ora bem. Eram, foram, serão sempre, referencias maiores de pessoas de grande Cultura ligadas aos jornais. De elevada estatura intelectual, olimpica e insuspeita categoria na escrita tanto no conteudo como na forma, independentemente das opções e condicionalismos do tempo em q desempenharam funções.
Hoje, a espalhada opressão dos lóbis e a mera colocação estratégica para "balizamento politico" - associadas ao facto de se ler mais online q propriamente papel - promoveram um descalabro cultural nos modos, nos conteúdos e na forma. Em todos os registos e semânticas da comunicação q deveria ser um acto consciente de partilha edificante.
E a coisa parte das chefias. E das chefias das chefias, subindo até à administração normalmente distante, indiferente, gananciosa e meramente ...administrativa.
Lêem-se imbecilidades diárias, lauda-se a mediocridade, privilegia-se o sensacionalismo gratuito. Com normativos condicionados à tiragem e às modas, o espaço audio ciber e de jornalismo em papel inunda-nos de uma silente mutilaçao do gosto.
Serei antigo, pronto. Admito. Ou serei apenas atento por denunciar o q sinto?
Cito a Carmina Burana (sim, Latim é um dos meus secretamente inúteis benefícios... :) ):
iste mundus furibundus falsa prestat gaudia
quia fluunt et decurrunt ceu campi lilia
laus mundana vita vana vera tollit praemia
nam impellit et submergit animas in tártara
(trad mº livre: este mundo em turbulência providencia uma falsa alegria q flui e se propaga como os lírios no campo; a vida verdadeiramente frívola colhe grandes elogios mundanos, mas impele os espíritos à destruição)

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Palestra de Santo Estevão à vestal de Roissy, segundo Dionísius

Ele queria-te diferente e incondicional. De outro modo, nunca serias sua. 
Tranquilo e estranhamente tutelar, explicou longamente ao que vinha. Expôs o assunto com o rigor de um professor que explicasse uma matéria nova, inesperadamente interessante. E esclareceu minuciosamente tudo.
Tu ouvias, absorta e sem palavras. Olhavas fascinada a magia das suas mãos. Aquilo fazia-te voar o pensamento em direcções antagónicas e confusas. Estavas perplexa ante o enfoque bizarro e simples de tanta erudição. 
De vez em quando perguntavas qualquer coisa breve. Apenas monossílabos, duas palavras se tanto; quase surdas. E ele, sorrindo, muito tranquilo, ia respondendo claramente.
Tudo se tornava claro e belo aos olhos da simplicidade. Estranhavas o planeta que apenas entrevias. Mas começavas, devagar, a entender o belo, - violentamente belo e assustador - princípio de um novo tempo. Toda a cidade afinal iria mudar. A lógica das coisas podia inverter-se. E tu ainda mais.
Pedia-te apenas uma folha. Em branco. Nada mais. Parecia fácil. 
Contudo, as coisas deveriam processar-se num rigor litúrgico de acordo com os novos dias. Mais longos, lânguidos e estendidos. Percebias isso. Nunca tinhas pensado, mas o preceito era mandatório e evidente. As cores, os cheiros, os modos, a paisagem, os silêncios. As roupas, a luz, os óleos, os fumos, os vinhos e sabores. As razões e os porquês.
O erotismo é sempre o percurso mais longo entre dois pontos. 
Sentias já o perpassar dos dedos pela nuca, pela sombra, pelas fímbrias vibráteis do teu mais vibrante e secreto feminino. Sugestão pura, claro. Ele não te tocara sequer. 
Nada do que foras seria prometido; nunca poderias saber do improviso, pois as flores do poeta voavam no por do sol com a graça incerta doutro desejo. Carregado, talvez, das folhas de um outono sabedor. Talvez perverso. Talvez puro, essencial e desprovido. 
Que responder?
A natureza dizia-te que sim. O medo dizia-te que não. O desejo dizia-te mulher. A cidade gritava-te vergonha. O tempo fazia-se urgente. A volúpia sussurrava-te já. A voz fugia-te da boca. O insulto travava-se na garganta. O susto impedia-te de pensar. O corpo era apenas totalmente corpo. Como nunca pensaras senti-lo. Tremias. Tão mulher.
Ele sorriu pausadamente e, cortês, beijou-te longamente a mão.
O maldito carrossel de sentimentos recomeçava. Ardias em febre e contudo suavas, sem saber porquê. Um fundo silêncio fez-se.
Ambos ficaram calados um momento; foi quando um pássaro deu um grito violento algures no breu da noite. E um vulcão começou a ferver de lava no centro de ti, que não calaste.
Subitamente, quase ao mesmo tempo, um madeiro rebolou do lume e caiu, saltando do lar, incandescente. E transformou-se em cisne, sacudindo as asas. Um belíssimo cisne negro.
Era o sinal. Afinal os milagres existiam.
Tudo o que sentias em ti provava a essência superior do gesto de existir. Não era agora Ele - que, de resto, já terminara e parecia descansar, olhando num qqr vago infinito, completamente ausente. Ele dera-te tudo. Todos os dados, todos os códigos, todas as palavras e segredos. Todas as canções. E partiu. Deixando apenas o pedido que lhe dissesses sim, simbolicamente, enviando-lhe uma folha branca por carta.
Não era ele. Não. Agora eras tu. Apenas tu quem tinha de decidir.
Arrepiaste-te no frio que começava a tombar. Alta montanha. Outono da vida. Idade de urgências últimas e decisões finais. Em que já não há o tempo todo para demorar o tempo todo a decidir do tempo. E tu prometeras pensar seriamente no assunto.
Na manhã seguinte, compraste mil folhas brancas de papel bíblia. Embrulhaste a pesada resma, assim, sem uma palavra sequer, em seda do jardim tecida a maresia e lágrimas de fada. Ataste com velhas e agrestes cordas de navio, ainda salgadas do mar, e lacraste com mel perfumado de medronho colhido na madrugada.
E enviaste-lhe. Talvez inquieta, talvez tremendo; mas feliz.
Era o princípio de um desenlace apaixonante, bizarramente adivinhado, mas seguramente belo. Tinhas a certeza. E de novo tremias de temor; mas outramente júbilo.
Assim te juravas.

A cidade toda haveria de mudar. Custasse o que custasse. Raios. A começar por ti.

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Filhos da madrugada



Nascido no Ribatejo acompanhei meu pai nas andanças de professor. Quando tinha os meus 4 anos vim para Lisboa bairro de S Bento, onde ele fora colocado numa Escola. Ali cresci. Comprei a primeira viola e fui ao Zip Zip em 69. Depois foi crescer na raiva e na vida, encontrar companheiros, fazer teatro, cantar por aí fora, descobrir mais gente que pensava como eu, jovens e contra a Guerra Colonial.
Fiz nessa altura teatro do reviralho no TEC, com o Carlos Avilez. Era também o tempo das “sessões de baladas”, nome inocente com que já não conseguíamos enganar ninguém e que a Pide/DGS vigiava escrutinada e minuciosamente. Às vezes acabava mal.
Ia com o Zeca, o Samuel, o Pedro Lobo Antunes, o AP Braga; … ia com o Rui Mingas, com o Macedo, o Zé Jorge, o Denis Cintra, enfim os que podiam. Dizia-se poesia, cantava-se pouco e falava-se mais. Era um tipo de convívio de conjurados, uma espécie de catacumbas romanas onde se respirava o desejo imenso de Democracia, fim da guerra colonial, eleições livres, Liberdade.
E veio depois o esperado e suspirado 25 de Abril, o mais lindo episódio de uma vida, a alegria fez-se paixão e sair era importante. Era eu Oficial de Marinha. Tinha acabado o curso e por lá andava. Ao chegar a Santos nao se podia passar. Tive de ir a pé até à doca da Marinha. Os chaimites ao longo da Ribeira das Naus. Eu sem ter certezas de nada. Fardado. Bom. Desconhecidos davam-me abraços, ao passar. Eu, devagar, começava a perceber que algo de tremendamente marcante estava a mudar este país. Com medo que fosse golpe do Kaulza. Mas não era. Seria gente do Spinola. Tensao enorme. Passei por todo o nucleo onde as coisas se decidiam. Indescritível.
Fiquei fechado na Escola Naval que, pela tarde de 25, aderiu ao MFA. Celebrámos ainda aquartelados. Fez-se festa abriu-se champagne. Dia seguinte houve ordem do Comando e saimos para nossas casas; fomos cheirar a Liberdade.
Depois, as cantigas. Combinávamos na Era Nova, na Avenida de D Carlos, em Lisboa, que era a sede da Cooperativa. Edifício ocupado, em tempos de revolução; tempos adiados de renda e provisórios na definição, todos sabiam. Um dia era uma situação que teria o seu fim.
Ajustavam-se então os sítios, os percursos, os carros, as caminhadas, as horas.
Combinávamos quem ia com quem, onde, quem ia de boleia, quem eram os contactos no local e se e quanto nos ajudariam na gasolina. Quantas vezes íamos, sem saber sequer se nos pagavam os gastos, juntando os tostões para encher o depósito.
Normalmente, a Irene – supostamente responsável pelo secretariado, se tal coisa se podia dizer do que fazia…- baralhava tudo, pois o seu conhecimento da Geografia portuguesa era diminuto. Uma vez, um coro esperado em Vendas Novas foi parar a Odemira. Era tudo muito divertido. Para Todos nós era uma forma de descobrir finalmente, o verdadeiro Portugal.
Na viagem parávamos para endireitar as costas, vigiar a carga, ver se o pneu já tinha rebentado, por água no radiador. Digo isto, que me lembrei agora, porque tive, de facto, um pneu com um perigosíssimo aneurisma de estimação, que andou centenas de quilómetros no meu GS amarelo, até que o Chico Fanhais me proibir de andar com aquilo. Curiosamente, não por questões de segurança, mas porque queria andar mais depressa. Adiante.
Chegar para o jantar era sempre uma festa. Os amigos radicados no local, gente distante dos centros, activistas de combate local, malta insistente no convite, ficava aliviada. Tínhamos, realmente, chegado. O Zeca já chegou, avisavam-se uns aos outros. Era um alívio.
Éramos normalmente anunciados - com a presença do Zeca e outros. Era este sempre o cartel.
Eu, claro, era um dos outros. A teoria dos vade mecums, estão a ver. Os vade mecuns éramos nós, os outros. Os badamecos, em moderna corruptela, nada mais que isso. Cheios de importância por estarmos ali, acamaradando com o Zeca ou o Adriano.
Ou por estarmos ali, simplesmente solidários, e fazermos parte de um grupo de gente que se estimava. Importantes no espaço e no momento, até por sermos sérios no lado de dentro de tudo o que fazíamos e acreditávamos. E ajudávamo-nos uns aos outros.
- Quem trouxe um adufe?
- Empresta aí o teu cavaquinho…
O Zeca não gostava deste modo de anunciar a festa, por desrespeito aos colegas; mas, a bem dizer, nem nós nos importávamos, nem era corrigível. Por toda a parte, escrevia-se assim. Éramos os outros.
Toquei quilómetros de chula da Povoa com o Zeca, chiça. Lembram-se? Começava assim:

Em Janeiro bebo o vinho,
em Fevereiro como o pão,
nem que chovam picaretas,
hás-de cair rei Milhão.

Éramos muitos. O Zeca, quando aparecia o pessoal todo, chamava-nos o bacalhau com todos.
Por vezes até vinha o Sérgio, já era uma figura muito conhecida. Mas lembro toda a gente. Lembro de um tal Aristides, quase sempre de sandálias; o exímio Zé Luís Iglésias, que, mais tarde, vim a encontrar em Nova Iorque, onde vive; o Chico Fanhais, de voz eclesiástica e timbre inconfundível; o nosso eterno Adriano, que tão breve se tornou; o Fausto, um tanto reservado e sempre exigente nos arranjos; o bizarro Fernando Laranjeira, que um dia se meteu num táxi e disse tranquilamente “-Paris, se faz favor!”
O Mário Viegas, por vezes, vinha e dizia um poema maluco, coisas que só ele descobria. Ou o Zé Fanha, que os escrevia com sentimento e dizia como ninguém. Aparecia o Paulo Vaz de Carvalho, que tocava com o Adriano e encantava-nos – onde raio tinha ele descoberto aquele gajo? O tipo tocava para burro.
Havia os Salomés todos, cinco irmãos do Redondo, uma festa à parte, alentejana, às vezes lá vinha o Grupo todo, onde o Janita requintava. Vinham os gémeos da Era Nova, o Samuel e o Henrique, grandes tocadores de trancanholas. O Carlos Moniz, sempre sorridente. O Júlio Pereira, caramba, o tipo tocava daquilo tudo como só ele. Do norte vinham o Tino Flores, esquerdista de fogo, e o Manel Freire, com aquele ar de bonzão que sempre teve, carregando a Pedra Filosofal, que todos entoávamos. E, por vezes aparecia, como se habitasse outro planeta, o António Macedo; canta, canta, amigo, canta. O Pintinhas trazia um alforge com adufes, era uma alegria. O Cília, era um histórico, aparecia pouco, sempre reservado e o tutelar Zé Mário, sempre muito sério, não apreciava muito aquelas confusões. O GAC era uma festa de alegria, mas só vinha se fosse a UDP a mandar na festa... O Serginho, o Mestre, claro, grande músico, fiel comunista sempre, esse contava anedotas e pragas de Olhão nos intervalos…
Todos tocávamos de tudo um pouco – guitarras, percussões, coros. Vivia ainda o MFA. Era a festa da Liberdade. A descoberta da Democracia.
Como nunca fiz questão de separar as águas, por vezes, tocava também com gente da Cantar Abril. O José Jorge Letria, o Barata Moura, o Samuel, o Tordo; o genial Ary, com quem dava abraços de tremer a terra e dar conta dos costados a qualquer um.
Era isto o espírito de Abril.
Depois separámo-nos, cada um foi à sua vida, com projecto próprio. Ou não.
Muitos partiram mesmo; outros foram vítimas das mil mortes que há na vida.
Eu comecei a gravar regularmente e a fazer Concertos por esse país fora. Sempre falei imenso entre canções, das intenções que presidem a cada composição, o caso especifico que determinou aquele trabalho, a história que lhe está associada. Um chato. Talvez porque fui professor numa primeira vida. E só muito a medo larguei uma situação confortável - embora para mim, insustentável – de ordenado certo e prestigiante doutoria efectiva, num velho Liceu de Lisboa. Minha mãe olhou-me cautelosa e disse apenas: -“Vê lá, filho…”
Mas foi. Escolhi aprofundar a música com mais rigor; e as palavras com mais merecimento.
Mas lembro com a memória mais clara de mim mesmo, benjamim nesse bando de alegria e consciência, como era bom ser ainda criança e acreditar tanto no Futuro.
Subíamos ao palco com a alegria do combate. Combatíamos pelo presente, nunca suficientemente socialista; pelas ameaças da reacção, nunca suficientemente controlada e pela continuidade do espírito de Abril, nunca demasiado revolucionário. Temíamos o regresso da censura, do país velho, cinzento, triste e salazarento onde havíamos crescido.
Continuava a ser preciso exorcizar o medo.
O medo se calhar, de admitir como era breve tanto acreditar. O medo de admitir que tantos na sombra, viviam para urdir esquemas sombrios de poder, cupidez e ganância. O Governo, a Banca, as Empresas do Estado, as intervencionadas… Viu-se depois.
E de derrapagem em buraco. De pequena burla a grande fraude, hoje chegámos a isto.
De tantos socialismos, sociais socialismos, centrais socialismos, democrático socialismos, e seja lá como se chame a tudo o que passámos e vivemos. De todas as glórias e angústias e passados. De todas as benesses e enfados. De todos os milhões da CEE. De todas as obras faraónicas. Ao fim de todos os enganos e desmandos de quem nos governou. Ao fim de um cansaço imenso de já não acreditar em nada.
Chegámos ao estado de podridão de tudo o que nos rodeia, mesmo da lendária deusa Europa - que era uma diva loira - hoje podre de feia, chupista e interesseira. E ameaçadoramente exigente, como uma amante passada do prazo, chata, em menopausa financeira, de casaco apertado no peito, mal disposta e falando uma língua difícil.
Arbeit macht Frei, outra vez; só que doutra maneira.
Hoje, estamos aqui, companheiros. Entre o sonho de ternura que nos roubam e o preito de justiça que nos arrancam. Chamam-nos lixo.
Entre a reforma aos 70 anos, ou lá quando decidirem, e as outras mortes de processamento benigno, bondosamente cívica, urbanamente aceitável - compromissos menores de um viver poucamente ambicioso. Hoje aqui estamos; encabulados, estupefactos, roubados e enfiados na desilusão.
Viver aqui e agora, podia ser bem mais que isto que nos dão. Digo eu.
E olho as velhas guitarras que fizeram a revolução neste país; que ainda estão ali, ao alto do armário. Enquanto o peito cava, renascente, uma alma indigna e amarga.
Um sentido de futuro melhor. Onde tudo saiba acontecer de novo, se necessário for.
Em que do lixo que nos chamam nos tornemos gente, de novo, aos olhos do porvir.
E só então sim seremos filhos da madrugada. Merecidamente.
Não daquela, ideal e nobre, eterna, que correspondeu à utopia.
Mas outra, muito urgente também, que um dia rebentará de novo pelas esquinas da cidade.

domingo, 9 de abril de 2017

La Lys

Não faço uma ideia onde seja, nem que tamanho tenha o raio da terra.
Será sempre um nome, uma memória dividida, no seu sabor para mim.
Criança apenas, todos os dias nove de Abril, meu pai tinha a antipática rotina de me levar ao cemitério da aldeia, precisamente ao talhão dos combatentes da Grande Guerra. Em memória de meu avô.
E eu, contrariado, lá ia. Pela mão. Vestindo o meu fatinho de veludo azul.
Pequenino e tropeçando. Olhando de lado para aqueles mortos todos.
Um pesadelo garantido para meses a fio.
Não achava piada nenhuma àquilo, sinceramente. Tinha de se ter um ar sério.
Penteavam-me o cabelo de uma forma estúpida e o fato tinha costuras que arranhavam.
Logicamente. Aquilo era um castigo.
Mesmo que eu nada tivesse feito de errado, a cada dia nove de Abril, era sabido – visita cultural ao cemitério!
Restará acrescentar que se tratava de uma espécie de package de férias de Páscoa. Coisa que só viria a ser descoberta muito mais tarde, quando as pessoas arranjaram dinheiro e vocação para viajar.
Na realidade o meu pai fazia anos a dez, a sua mãe – e minha avó Emília – a onze. Porém, ao que parece, a data maior associada a meu avô não era - nunca seria - a data de seu aniversário, mas sim o dia nove de Abril. Data da Batalha de La Lys.
Dia em que – ao que se descobriria mais tarde, com grande orgulho da família – ele invadira, sozinho, com inaudita coragem, o poderoso exército alemão!

Eu explico.
Pobres homens de campo e gente humilde, mandámos para a guerra – convencidos que o velho prestígio guerreiro e conquistador lusitano de outrora, só por si, sobraria para amedrontar quaisquer inimigos – uns milhares de homens impreparados, mal armados, recrutados à pressa, meio esparvoados e sem saber ao que iam. Uma espingarda, um capacete e um cobertor …e ala, vamos para a Guerra! A pé.
Ora a guerra que lhes tinham contado era, com efeito, uma coisa distante. Uma história romanesca. Uma cruzada pelo bem e pela paz, a que urgia aderir, ao que parece, para mais completa glória da Nação.
Cheios de Afonsos Henriques e Aljubarrotas na memória, lá foram.
Aquilo eram favas contadas. Assim que chegassem lá os portugueses, o resto do pessoal acobardava-se todo e pronto. Fugiam. Estava resolvido.
Guerra?! Aquilo era coisa de jornais, para quem lesse tal coisa.
Nada de grave. Romance. Uma autêntica passeata. Conversa de jornais e da rádio. Se já houvesse telefonia, porque, a bem dizer, a TSF convencional ainda nem balbuciava os primeiros sinais!...
Havia, isso sim, emissões em morse, que eram captadas e transmitidas aos centros militares por pessoal das Transmissões, e o caos no sector era geral.
Telexes descreviam, desse modo lento e precário, o evoluir das coisas.
Quantas vezes interceptados pela contra-informação inimiga e alterados para quebrar o moral do opositor, num mar de dúvidas e mentiras, em que todos os exércitos navegavam, sem solução alternativa, nem certezas.
Alias, os próprios generais se apercebiam de que ganharia a Guerra nessa altura quem ganhasse a guerra das transmissões. A telegrafia sem fios dava os seus primeiros passos, ainda com vários sistemas, todos eles bem incompletos, apesar de Marconi já se revelar o melhor e mais activo a vender o seu invento e a lutar pela sua implementação.
Era necessário activar as toscas maquinetas receptoras, com a chamada luminária ou tríodo TM. E para transmitir era necessário, ou estar em alcance visual e fazer comunicação semafórica, ou passar fio até à zona desejada, para que o telégrafo pudesse trabalhar. E tornavam-se necessários, obviamente, postes suportadores pelo caminho, entre os pontos desejados para comunicação das notícias.
Postes cavados no terreno minado. E tudo ainda transmitido à manivelada.
Deste modo, do que chegava, do que se recebia e da sua controversa utilidade, sobrava uma imensa desconfiança de que o inimigo já tivesse ouvido a conversa toda; ou que o morse do parceiro fosse mais rápido que o do nosso operador.
Ou, enfim, que os carregadores de postes fizessem uma grave de zelo.
Era, com efeito, difícil a colocação – ainda por cima sob fogo inimigo – dos paus pesadíssimos que haviam de endireitar-se enfiados em covas imensas, cavadas a braço mal alimentado, por homens com uma coragem sem espingarda, apenas armados de cordas e fios e pás de valar.
Tudo isto, enquanto, supostamente, os companheiros os protegiam da sua invulgarmente braçal e pouco lembrada maneira de participar na guerra. Mas tão importante e fulcral.
 Pobre guerra, com efeito, a destes moços; heróis – sem lhes reconhecerem qualquer heroísmo – de picaretas e pás na mão, num dia a dia estúpido, esgotante e perigosamente igual.

Conclua-se já agora, que a cada dia se avançava um pouco na descoberta de novos processos de tornar todo o processo de transmissão mais veloz e aperfeiçoado. Mas só no fim do conflito a TSF, pela primeira vez convertida em radiotelefonia, transmitiria a voz humana, num milagre sonhado há muito tempo por Marconi.
Demasiado tarde para estes heróis do código morse e do pau de fio às costas.
Sabia-se assim, mais ou menos, o que a informação permitia que se soubesse – que era pouco. E compreendia-se de tudo aquilo ainda menos que pouco, para não dizer nada.

Ora bem. A função de meu avô era montar fio.
Pobre herói de braço forte e corpulento, ribatejano rotundo e avantajado. O pessoal da sua especialidade andava em grupo, mas a fome com que os portugueses andavam, fazia com que os percursos nem sempre fosse os mais directos.
E lá haveria uma quinta que ficava sem galinhas, a outra sem uns ovos, outra ainda sem alguma fruta...
Se o inimigo atacava, havia que recolher. De novo se fariam ao campo, mais tarde, na esperança de não terem maus encontros. Outra vez cavar buracos e passar fio. Outra vez a fome, o abandono, o frio, a miséria, uma desorganização total.
Para onde é agora? Por onde? E como chegamos lá?
A cadeia de comando caótica, por sua vez, distante, dispersa, raras vezes concordante, debaixo de fogo. Também eles sem saber… Gente de várias nações sem se entender. Enfim, facilmente se imagina e se calcula a confusão…

Acontece que o meu avô era um homem destemido, desbragado, positivo. Com um copito era capaz de tudo; até de trepar pau nas fuças do inimigo.
E um belo dia, ao que parece, o nevoeiro fez-lhe uma partida.
Ficou lá no alto do pau, sózinho e começou a chamar pelos camaradas mas em vão. O pessoal tinha todo largado o material e fugido, sabe-se lá para onde.
Que se passaria?- pensou ele, já aflito.
Entretanto, um barulho cavo e surdo se ouvia cada vez mais perto. O exército inimigo avançava, passo a passo, destruidor e temível.
E quando pensou em descer do pau, era demasiado tarde. Eles aí estavam!
O meu avô ficou transido e rezou à virgem, aos santos todos. Encomendou a alma sete vezes a Deus e preparou-se para levar um tiro, talvez muitos, e cair como um tordo apanhado em galho de árvore.
Mas o nevoeiro denso da velha Flandres, dessa vez, ia ser seu amigo.
Ninguém o viu!
O exército alemão passou, passou, passou, demorou horas a passar… e o herói lá se mantinha suspenso. Com o coração a bater mais que as máquinas de guerra cá em baixo, o peito num estertor, as pernas já sem sentir nada, as mãos em desespero agarradas ao pau de fio, o corpo dormente do arnês. O frio e o nevoeiro a enregelarem os ossos e a alma. A espera da morte a qualquer momento. Na vaga incerteza de uma improvável sorte que o salvasse.
Não os via. A neblina era espessa como leite. Pressentia-os.
Pareciam falar uma lingua estranhíssima, arranhada e gutural. E soavam mais jovens que supunha. Rapazitos seriam, gritando muito uns com os outros. Infantaria. Um barulho ensurdecedor de granadas explodindo e de gritos por todo o lado.
Por um momento, pararam junto ao poste. Discutiam-lhe, decerto, a sorte. Mas os fios largados pelo chão denunciavam que não tinha nunca chegado a ser útil e tornavam-no manifestamente inofensivo. Era inútil perder tempo a derrubar aquilo pois não servia para nada ao inimigo. Era apenas um pau levantado no chão. À cautela atiraram uma rajada para o alto oculto no densíssimo nevoeiro.
O pobre Manel aí, confessemos, teve sorte. Nada lhe acertou. As balas rasaram-lhe o corpo, mais nada. E mordeu-se todo com medo de morrer. Mas para sua muita sorte os inimigos desistiram. Todo o material largado no chão – fio, pás, enxadas…- indicava a fuga. E havia que avançar, avançar sempre.
- Weiter gehen!
Isso mesmo. Adiante.
E lá seguiram.

Depois vieram os carros, e o chão tremia debaixo dos seus pés. Perdão. O chão tremia; mas ele já só mal o podia sentir, agarrado que continuava ao grosso madeiro, que vibrava a cada rodado que passava. Porque os pés, suspensos e frios, já tinham congelado na espera.
Demoraram uma hora a passar. Ou mais. Seriam duas. Ele nunca soube.
Depois, devagar, os gritos e estampidos foram-se perdendo na distância.
Seria possível? Depois de deixar passsar uma margem de segurança sem ouvir mais nada, o seu coração ouvia-se mais alto que o silêncio.
O nevoeiro não levantava. A cinco metros já ninguém via nada. Só os postes tinham dez ou mais de altura. Ele próprio não via o chão.
Deu ainda mais uma e outra margem de segurança. A tremer todo, lá se arriscou a descer. Devagar, espreitando sempre.
O exército alemão passara.
Havia no ar um cheiro imenso a pólvora e a morte.
Estava completamente só.
Exausto. Borrado de medo. Enregelado. Faminto. A tremer. Mas vivo.

Acontece que na aldeia nada se sabia. E se, de vez em quando, aparecia uma carta E, normalmente, para desgraça da família, eram sempre más notícias. Assim, calhou, em certo dia, a minha avó receber do Ministério do Exército – ou da Guerra, como então se chamava – a sibilina e curva notícia.
O seu marido fora dado como desaparecido em combate. Era assim que se dizia a morte.
O choque foi brutal. Chorou-se a desgraça e receou-se pela vida futura. O pai e o sustento iam faltar. Como sobreviver, pobre mulher, viúva, e com dois filhos para sustentar?
Pos-se luto e carpiram-se noites de uma tristeza profunda. Uma mágoa, assim, sem ter corpo para funeral é uma mágoa especialmente funda, estúpida e perplexa. Não se percebe como terminou tudo e, no entanto, tudo terminou. Lá longe, sem se saber como, nem porquê.
Aliás há um eufemismo imenso na terminologia militar, quando trata da morte de seus filhos. Se não há corpo, o que se regista estatisticamente é um desaparecimento. Não conta como morte. É uma sensação esquisita.
- Que é feito de teu pai? …De teu irmão? De teu filho? Morreu?
- Não sei. Desapareceu!
Estranha e violenta resposta, a que teriam de ensinar aos filhos.
Junto de um amigo sargento, cujo conhecia um capitão em Lisboa, toda a família tentou indagar novas do pobre Manuel Miguel. Nada. Tinha sido apanhado num ataque. Esmagado pela frente inimiga. Desaparecido.
Mas afinal não eram todos eles “desaparecidos em combate” na sua maioria? Aquilo foi, relembre-se, a maior chacina humana sofrida pelo exército português depois de Alcácer Quibir! Uma razia total. Um país inteiro de luto.

A mãe Anita nunca desistiu. Nunca quis acreditar.
Prometeu a Nossa Senhora ir todos os dias à Igreja Velha, nem que fosse entrar e sair, se o seu filho voltasse. E só Deus sabia como arriscava, pois o seu marido João Ralhão não era homem para brincadeiras e tanpouco dado a assuntos clericais.
Enganou-o toda a vida com uma caixa de fósforos, sempre novinha, que trazia escondida, num bolso oculto duma das muitas saias que então se usavam.
Era o pretexto, se ele desse conta de sua falta. E ele sabia.
- Onde andaste, mulher dum raio? - Perguntava ele, falsamente furibundo.
- Olha, homem, fui comprar fósforos, que já não tinha… – respondia ela, prontamente. Era mentira; e ele sabia.
Morreram os dois com uma semana de intervalo.
O coração do velho João não aguentou mais que esse tempo de saudades e morreu de fastio pelo Mundo e amor de morte pela sua mulher.
História bonita e verdadeira de meu sangue, acontecida bem antes de mim.

Mas voltemos à história de seu filho, evoluindo, sem dicionário, em pátria alheia.
Passava o tempo. O bom do Manuel, sem falar a língua e com medo dos ocupantes, arrastou-se semanas pela França ocupada, numa vida furtiva e vadia, sem saber onde estava, nem ver parceiros.
Voltar para trás, nem pensar. Ia dar de caras com os alemães. Era a morte certa.
Aos poucos, vindos daqui e dali, alguns outros colegas, todos famintos e esfarrapados, começaram a juntar-se e, em dois meses, um grupo de insólitos soldados, cuja roupa rota e suja apenas muito longinquamente se assemelhava já a um uniforme militar, constituía um triste espectáculo de pobreza e mendicidade.
Alguns franceses, embora muito a medo, iam sustentando o pobre grupo de maltrapilhos. Por vezes trabalhavam pela comida em fazendas e quintas. Os olhos encovados e o aspecto denunciavam-nos a qualquer olhar mais atento.
Foi isso que aconteceu, largos meses depois, quando alguém foi avisar representantes do exército português de que andariam homens extraviados em tal parte.
Regressaram então aos respectivos Batalhões, campos de resistência que eram uma espécie de babilónia de línguas e culturas. Os portugueses que haviam sobrado de tamanha má sorte eram, apesar de tudo, os mais afortunados, de entre tantos milhares de pobres compatriotas que morreram, sem saber bem por que causa combatiam…
Eram sobreviventes. Estropiados, encolhidos, desorientados, doentes e feridos no corpo e na alma e que, finalmente, iam sendo, aos poucos, repatriados para casa.
O fracasso na consciência, a fome no corpo, a vergonha na derrota e a morte na memória.
….
Quando chegou à terra, o meu avô estava magro como um cão vadio.
Era, por outro lado, um morto vivo, com tudo o que a desagradável sensação lhe podia trazer.
- Oh Manel! Oh Homem! Mas então afinal tu não tinhas morrido?! – Diziam.
Mas a alegria de voltar foi tamanha que o morto vivo em breve recuperou, com um tratamento intensivo à base de matanças de porco sucessivas, celebrações de vida, enchidos de boa curtimenta, tinto de Alcorochel, sopas de fressura, toucinhas de colorau e avantajadas migas.
O meu querido avô – Manuel Miguel Chora.
De quem herdei, ao que parece, as mãos, o vigor e a rotundidade. …Promovido a primeiro-cabo, por serviços heróicos ao Exército Português na Grande Guerra de 1914-18!...

O tal herói que, um dia – sem querer, nem saber bem como... – “Invadiu” sozinho o exército inimigo, na célebre Batalha de La Lys, num dia 9 de Abril de que nunca perderei memória! E por ser tudo verdade aqui se passa, embora tardio, o competente Auto.

Seu neto, a bem da Nação,

PB

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Carta aberta a um assassino da Alma Portuguesa


Há penas previstas para as ofensas corporais. Para os homicídios. Para o roubo; para o prejuízo ou dano psicológico. Para quase tudo o que a mente maldosa do homem vai inventando e judiando aos outros. Torna-se contudo, bem mais difícil definir as coisas e instruir processo para os danos da alma.
Ora Vossência assassinou precisamente a alma da Língua Portuguesa. Inocente e limpa. Pura e linda. Planetária e expressiva. Um dos valores que da lei da morte nos ia libertando, pois para lá dela nos continua.
Vossência criou um aborto putativamente correctivo. Mudou uma língua das mais belas e espalhadas do planeta colocando-a num supermercado de ventoinhas e tornou-a uma lotaria sem sentido.
Vossência não para para pensar. (Se não perceber o que eu escrevi, pergunte a si mesmo se tal redacção sem acento faz algum sentido).
Vossência avança e esgrime que o acordo é um benefício por não sei quê, tem vantagens que ninguém vê, urgência por vá-se lá saber. Que moderniza coisas que o não pediram, se impunha desde não sei quando, unifica países que não sei se, esclarece dúvidas que não existiam e resolve questões que não sei como.
Mentira. Oportunismo parvo e espúrio. Pedantismo filólogo de terceira escolha, gosto zero, sensibilidade casteleja e distante, razão desarrazoada e sem sentido, loucura arsenalista e arrasadora.
Vossência assassinou a língua portuguesa. Vossência é, portantissimamente, um criminoso.
Vossência - e o grupo de bestas que o rodeia - flecharam mortalmente o peito puro e terno da Ala dos Namorados; os que pela Língua dão a cara, o peito e a paixão. Coisa que Vossência nunca entenderá. Mas lutamos com armas desiguais, pois Vossência tem os exércitos do poder nesta justa, - onde, de justa, nossa causa é bem mais justa.
Continue a espetar inocentes espectadores, continue a fazer recessões nas recepções; e imponha redassões nas redacções. Que tal ato o ate no acto de malfazer e espalhar o desgosto e impropério. Que lhe perdoem as crianças de hoje e do futuro tudo o que Vossência rasgou de todos nós - sem nenhuma necessidade - da história, da sensibilidade e da alma da Lingua portuguesa.
Vossência, peço perdão, entra na Historia, sim.
Passa a estar ao nível de um Conde Andeiro. Um Miguel de Vasconcelos, um Alves dos Reis.
Vossência provoca-me um nojo maior. Que sinto em nome de uma pátria que tinha na sua Língua um expoente de justeza, criatividade, elegância, riqueza expressiva e aristocracia latina que lhe foram retiradas. A velha Língua Portuguesa foi ferida de morte por uma iniciativa casteleja, malsã e injustificada. Vossência não sai em glória deste feito. Nem fermoso nem seguro.
Repito: - sinto nojo. Nojo, sim; em nome de todo o universo lusófono que assim sofre tal desfaçatez e improviso. Nojo, em nome da tristeza que os homens de Cultura deste país sentem, ao serem forçados a ver seus filhos e netos a escrever em dialecto de Malaca.
Mas terei de sentir esse nojo o resto da minha vida?
Pedro Barroso, Português, analfabeto
Autor, compositor e poeta, membro da Soc. Port, Autores
ex aluno de Latim do Prof. Vergílio Ferreira
Co autor de obra registada com o Prémio Nobel José Saramago