quinta-feira, 27 de abril de 2017

Palestra de Santo Estevão à vestal de Roissy, segundo Dionísius

Ele queria-te diferente e incondicional. De outro modo, nunca serias sua. 
Tranquilo e estranhamente tutelar, explicou longamente ao que vinha. Expôs o assunto com o rigor de um professor que explicasse uma matéria nova, inesperadamente interessante. E esclareceu minuciosamente tudo.
Tu ouvias, absorta e sem palavras. Olhavas fascinada a magia das suas mãos. Aquilo fazia-te voar o pensamento em direcções antagónicas e confusas. Estavas perplexa ante o enfoque bizarro e simples de tanta erudição. 
De vez em quando perguntavas qualquer coisa breve. Apenas monossílabos, duas palavras se tanto; quase surdas. E ele, sorrindo, muito tranquilo, ia respondendo claramente.
Tudo se tornava claro e belo aos olhos da simplicidade. Estranhavas o planeta que apenas entrevias. Mas começavas, devagar, a entender o belo, - violentamente belo e assustador - princípio de um novo tempo. Toda a cidade afinal iria mudar. A lógica das coisas podia inverter-se. E tu ainda mais.
Pedia-te apenas uma folha. Em branco. Nada mais. Parecia fácil. 
Contudo, as coisas deveriam processar-se num rigor litúrgico de acordo com os novos dias. Mais longos, lânguidos e estendidos. Percebias isso. Nunca tinhas pensado, mas o preceito era mandatório e evidente. As cores, os cheiros, os modos, a paisagem, os silêncios. As roupas, a luz, os óleos, os fumos, os vinhos e sabores. As razões e os porquês.
O erotismo é sempre o percurso mais longo entre dois pontos. 
Sentias já o perpassar dos dedos pela nuca, pela sombra, pelas fímbrias vibráteis do teu mais vibrante e secreto feminino. Sugestão pura, claro. Ele não te tocara sequer. 
Nada do que foras seria prometido; nunca poderias saber do improviso, pois as flores do poeta voavam no por do sol com a graça incerta doutro desejo. Carregado, talvez, das folhas de um outono sabedor. Talvez perverso. Talvez puro, essencial e desprovido. 
Que responder?
A natureza dizia-te que sim. O medo dizia-te que não. O desejo dizia-te mulher. A cidade gritava-te vergonha. O tempo fazia-se urgente. A volúpia sussurrava-te já. A voz fugia-te da boca. O insulto travava-se na garganta. O susto impedia-te de pensar. O corpo era apenas totalmente corpo. Como nunca pensaras senti-lo. Tremias. Tão mulher.
Ele sorriu pausadamente e, cortês, beijou-te longamente a mão.
O maldito carrossel de sentimentos recomeçava. Ardias em febre e contudo suavas, sem saber porquê. Um fundo silêncio fez-se.
Ambos ficaram calados um momento; foi quando um pássaro deu um grito violento algures no breu da noite. E um vulcão começou a ferver de lava no centro de ti, que não calaste.
Subitamente, quase ao mesmo tempo, um madeiro rebolou do lume e caiu, saltando do lar, incandescente. E transformou-se em cisne, sacudindo as asas. Um belíssimo cisne negro.
Era o sinal. Afinal os milagres existiam.
Tudo o que sentias em ti provava a essência superior do gesto de existir. Não era agora Ele - que, de resto, já terminara e parecia descansar, olhando num qqr vago infinito, completamente ausente. Ele dera-te tudo. Todos os dados, todos os códigos, todas as palavras e segredos. Todas as canções. E partiu. Deixando apenas o pedido que lhe dissesses sim, simbolicamente, enviando-lhe uma folha branca por carta.
Não era ele. Não. Agora eras tu. Apenas tu quem tinha de decidir.
Arrepiaste-te no frio que começava a tombar. Alta montanha. Outono da vida. Idade de urgências últimas e decisões finais. Em que já não há o tempo todo para demorar o tempo todo a decidir do tempo. E tu prometeras pensar seriamente no assunto.
Na manhã seguinte, compraste mil folhas brancas de papel bíblia. Embrulhaste a pesada resma, assim, sem uma palavra sequer, em seda do jardim tecida a maresia e lágrimas de fada. Ataste com velhas e agrestes cordas de navio, ainda salgadas do mar, e lacraste com mel perfumado de medronho colhido na madrugada.
E enviaste-lhe. Talvez inquieta, talvez tremendo; mas feliz.
Era o princípio de um desenlace apaixonante, bizarramente adivinhado, mas seguramente belo. Tinhas a certeza. E de novo tremias de temor; mas outramente júbilo.
Assim te juravas.

A cidade toda haveria de mudar. Custasse o que custasse. Raios. A começar por ti.

Nenhum comentário:

Postar um comentário