Palestra de Santo Estevão à vestal de Roissy,
segundo Dionísius…
Ele queria-te diferente e incondicional.
De outro modo, nunca serias sua.
Tranquilo e estranhamente tutelar, explicou
longamente ao que vinha. Expôs o assunto com o rigor de um professor que explicasse
uma matéria nova, inesperadamente interessante. E esclareceu minuciosamente
tudo.
Tu ouvias, absorta e sem palavras. Olhavas
fascinada a magia das suas mãos. Aquilo fazia-te voar o pensamento em direcções
antagónicas e confusas. Estavas perplexa ante o enfoque bizarro e simples de
tanta erudição.
De vez em quando perguntavas qualquer coisa breve. Apenas
monossílabos, duas palavras se tanto; quase surdas. E ele, sorrindo, muito tranquilo, ia respondendo
claramente.
Tudo se tornava claro e belo aos olhos
da simplicidade. Estranhavas o planeta que apenas entrevias. Mas começavas,
devagar, a entender o belo, - violentamente belo e assustador - princípio de um
novo tempo. Toda a cidade afinal iria mudar. A lógica das coisas podia inverter-se. E tu ainda mais.
Pedia-te apenas uma folha. Em branco.
Nada mais. Parecia fácil.
Contudo, as coisas deveriam processar-se num rigor
litúrgico de acordo com os novos dias. Mais longos, lânguidos e estendidos. Percebias
isso. Nunca tinhas pensado, mas o preceito era mandatório e evidente. As cores,
os cheiros, os modos, a paisagem, os silêncios. As roupas, a luz, os óleos, os
fumos, os vinhos e sabores. As razões e os porquês.
O erotismo é sempre o percurso mais
longo entre dois pontos.
Sentias já o perpassar dos dedos pela nuca, pela
sombra, pelas fímbrias vibráteis do teu mais vibrante e secreto feminino. Sugestão
pura, claro. Ele não te tocara sequer.
Nada do que foras seria prometido; nunca poderias saber do
improviso, pois as flores do poeta voavam no por do sol com a graça incerta doutro
desejo. Carregado, talvez, das folhas de um outono sabedor. Talvez perverso.
Talvez puro, essencial e desprovido.
Que responder?
A natureza dizia-te que sim. O medo
dizia-te que não. O desejo dizia-te mulher. A cidade gritava-te vergonha. O
tempo fazia-se urgente. A volúpia sussurrava-te já. A voz fugia-te da boca. O
insulto travava-se na garganta. O susto impedia-te de pensar. O corpo era
apenas totalmente corpo. Como nunca pensaras senti-lo. Tremias. Tão mulher.
Ele sorriu pausadamente e, cortês, beijou-te
longamente a mão.
O maldito carrossel de sentimentos recomeçava.
Ardias em febre e contudo suavas, sem saber porquê. Um fundo silêncio fez-se.
Ambos ficaram calados um momento; foi
quando um pássaro deu um grito violento algures no breu da noite. E um vulcão começou
a ferver de lava no centro de ti, que não calaste.
Subitamente, quase ao mesmo tempo, um
madeiro rebolou do lume e caiu, saltando do lar, incandescente. E
transformou-se em cisne, sacudindo as asas. Um belíssimo cisne negro.
Era o sinal. Afinal os milagres
existiam.
Tudo o que sentias em ti provava a
essência superior do gesto de existir. Não era agora Ele - que, de resto, já
terminara e parecia descansar, olhando num qqr vago infinito, completamente ausente.
Ele dera-te tudo. Todos os dados, todos os códigos, todas as palavras e
segredos. Todas as canções. E partiu. Deixando apenas o pedido que lhe dissesses sim,
simbolicamente, enviando-lhe uma folha branca por carta.
Não era ele. Não. Agora eras tu. Apenas
tu quem tinha de decidir.
Arrepiaste-te no frio que começava a
tombar. Alta montanha. Outono da vida. Idade de urgências últimas e decisões
finais. Em que já não há o tempo todo para demorar o tempo todo a decidir do
tempo. E tu prometeras pensar seriamente no assunto.
Na manhã seguinte, compraste mil folhas
brancas de papel bíblia. Embrulhaste a pesada resma, assim, sem uma palavra sequer, em
seda do jardim tecida a maresia e lágrimas de fada. Ataste com velhas e agrestes
cordas de navio, ainda salgadas do mar, e lacraste com mel perfumado de
medronho colhido na madrugada.
E enviaste-lhe. Talvez inquieta, talvez tremendo; mas feliz.
Era o princípio de um desenlace apaixonante,
bizarramente adivinhado, mas seguramente belo. Tinhas a certeza. E de novo
tremias de temor; mas outramente júbilo.
Assim te juravas.
A cidade toda haveria de mudar. Custasse
o que custasse. Raios. A começar por ti.
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