La
Lys
Não faço uma
ideia onde seja, nem que tamanho tenha o raio da terra.
Será sempre um
nome, uma memória dividida, no seu sabor para mim.
Criança apenas,
todos os dias nove de Abril, meu pai tinha a antipática rotina de me levar ao
cemitério da aldeia, precisamente ao talhão dos combatentes da Grande Guerra. Em
memória de meu avô.
E eu,
contrariado, lá ia. Pela mão. Vestindo o meu fatinho de veludo azul.
Pequenino e tropeçando.
Olhando de lado para aqueles mortos todos.
Um pesadelo
garantido para meses a fio.
Não achava
piada nenhuma àquilo, sinceramente. Tinha de se ter um ar sério.
Penteavam-me o
cabelo de uma forma estúpida e o fato tinha costuras que arranhavam.
Logicamente. Aquilo
era um castigo.
Mesmo que eu
nada tivesse feito de errado, a cada dia nove de Abril, era sabido – visita
cultural ao cemitério!
Restará
acrescentar que se tratava de uma espécie de package de férias de Páscoa. Coisa que só viria a ser descoberta
muito mais tarde, quando as pessoas arranjaram dinheiro e vocação para viajar.
Na realidade o
meu pai fazia anos a dez, a sua mãe –
e minha avó Emília – a onze. Porém,
ao que parece, a data maior associada a meu avô não era - nunca seria - a data
de seu aniversário, mas sim o dia nove
de Abril. Data da Batalha de La
Lys.
Dia em que – ao
que se descobriria mais tarde, com grande orgulho da família – ele invadira, sozinho,
com inaudita coragem, o poderoso exército alemão!
Eu explico.
Pobres homens
de campo e gente humilde, mandámos para a guerra – convencidos que o velho prestígio
guerreiro e conquistador lusitano de outrora, só por si, sobraria para
amedrontar quaisquer inimigos – uns milhares de homens impreparados, mal
armados, recrutados à pressa, meio esparvoados e sem saber ao que iam. Uma
espingarda, um capacete e um cobertor …e ala, vamos para a Guerra! A pé.
Ora a guerra que
lhes tinham contado era, com efeito, uma coisa distante. Uma história
romanesca. Uma cruzada pelo bem e pela paz, a que urgia aderir, ao que parece,
para mais completa glória da Nação.
Cheios de Afonsos
Henriques e Aljubarrotas na memória, lá foram.
Aquilo eram
favas contadas. Assim que chegassem lá os portugueses, o resto do pessoal
acobardava-se todo e pronto. Fugiam. Estava resolvido.
Guerra?!
Aquilo era coisa de jornais, para quem lesse tal coisa.
Nada de grave.
Romance. Uma autêntica passeata. Conversa de jornais e da rádio. Se já houvesse
telefonia, porque, a bem dizer, a TSF convencional ainda nem balbuciava os
primeiros sinais!...
Havia, isso
sim, emissões em morse, que eram captadas e transmitidas aos centros militares
por pessoal das Transmissões, e o
caos no sector era geral.
Telexes
descreviam, desse modo lento e precário, o evoluir das coisas.
Quantas vezes
interceptados pela contra-informação inimiga e alterados para quebrar o moral
do opositor, num mar de dúvidas e mentiras, em que todos os exércitos navegavam,
sem solução alternativa, nem certezas.
Alias, os
próprios generais se apercebiam de que ganharia a Guerra nessa altura quem
ganhasse a guerra das transmissões. A
telegrafia sem fios dava os seus primeiros passos, ainda com vários sistemas,
todos eles bem incompletos, apesar de Marconi já se revelar o melhor e mais
activo a vender o seu invento e a lutar pela sua implementação.
Era necessário
activar as toscas maquinetas receptoras, com a chamada luminária ou tríodo TM.
E para transmitir era necessário, ou estar em alcance visual e fazer
comunicação semafórica, ou passar fio até à zona desejada, para que o telégrafo
pudesse trabalhar. E tornavam-se necessários, obviamente, postes suportadores
pelo caminho, entre os pontos desejados para comunicação das notícias.
Postes cavados
no terreno minado. E tudo ainda transmitido à manivelada.
Deste modo, do
que chegava, do que se recebia e da sua controversa utilidade, sobrava uma imensa
desconfiança de que o inimigo já tivesse ouvido a conversa toda; ou que o morse do parceiro fosse mais rápido que
o do nosso operador.
Ou, enfim, que
os carregadores de postes fizessem uma grave de zelo.
Era, com
efeito, difícil a colocação – ainda por cima sob fogo inimigo – dos paus
pesadíssimos que haviam de endireitar-se enfiados em covas imensas, cavadas a
braço mal alimentado, por homens com uma coragem sem espingarda, apenas armados
de cordas e fios e pás de valar.
Tudo isto, enquanto,
supostamente, os companheiros os protegiam da sua invulgarmente braçal e pouco
lembrada maneira de participar na guerra. Mas tão importante e fulcral.
Pobre guerra, com efeito, a destes moços;
heróis – sem lhes reconhecerem qualquer heroísmo – de picaretas e pás na mão, num
dia a dia estúpido, esgotante e perigosamente igual.
Conclua-se já
agora, que a cada dia se avançava um pouco na descoberta de novos processos de
tornar todo o processo de transmissão mais veloz e aperfeiçoado. Mas só no fim
do conflito a TSF, pela primeira vez convertida em radiotelefonia, transmitiria
a voz humana, num milagre sonhado há muito tempo por Marconi.
Demasiado tarde
para estes heróis do código morse e do pau de fio às costas.
Sabia-se assim,
mais ou menos, o que a informação permitia que se soubesse – que era pouco. E
compreendia-se de tudo aquilo ainda menos que pouco, para não dizer nada.
Ora bem. A
função de meu avô era montar fio.
Pobre herói de
braço forte e corpulento, ribatejano rotundo e avantajado. O pessoal da sua
especialidade andava em grupo, mas a fome com que os portugueses andavam, fazia
com que os percursos nem sempre fosse os mais directos.
E lá haveria uma
quinta que ficava sem galinhas, a outra sem uns ovos, outra ainda sem alguma
fruta...
Se o inimigo
atacava, havia que recolher. De novo se fariam ao campo, mais tarde, na
esperança de não terem maus encontros. Outra vez cavar buracos e passar fio.
Outra vez a fome, o abandono, o frio, a miséria, uma desorganização total.
Para onde é agora? Por onde? E como chegamos
lá?
A cadeia de
comando caótica, por sua vez, distante, dispersa, raras vezes concordante,
debaixo de fogo. Também eles sem saber… Gente de várias nações sem se entender.
Enfim, facilmente se imagina e se calcula a confusão…
Acontece que o
meu avô era um homem destemido, desbragado, positivo. Com um copito era capaz
de tudo; até de trepar pau nas fuças do inimigo.
E um belo dia,
ao que parece, o nevoeiro fez-lhe uma partida.
Ficou lá no
alto do pau, sózinho e começou a chamar pelos camaradas mas em vão. O pessoal tinha todo largado
o material e fugido, sabe-se lá para onde.
Que se passaria?- pensou ele, já aflito.
Entretanto, um
barulho cavo e surdo se ouvia cada vez mais perto. O exército inimigo avançava,
passo a passo, destruidor e temível.
E quando
pensou em descer do pau, era demasiado tarde. Eles aí estavam!
O meu avô ficou
transido e rezou à virgem, aos santos todos. Encomendou a alma sete vezes a
Deus e preparou-se para levar um tiro, talvez muitos, e cair como um tordo
apanhado em galho de árvore.
Mas o nevoeiro
denso da velha Flandres, dessa vez, ia ser seu amigo.
Ninguém o viu!
O exército
alemão passou, passou, passou, demorou horas a passar… e o herói lá se mantinha
suspenso. Com o coração a bater mais que as máquinas de guerra cá em baixo, o
peito num estertor, as pernas já sem sentir nada, as mãos em desespero
agarradas ao pau de fio, o corpo dormente do arnês. O frio e o nevoeiro a enregelarem
os ossos e a alma. A espera da morte a qualquer momento. Na vaga incerteza de
uma improvável sorte que o salvasse.
Não os via. A
neblina era espessa como leite. Pressentia-os.
Pareciam falar
uma lingua estranhíssima, arranhada e gutural. E soavam mais jovens que supunha.
Rapazitos seriam, gritando muito uns com os outros. Infantaria. Um barulho
ensurdecedor de granadas explodindo e de gritos por todo o lado.
Por um
momento, pararam junto ao poste. Discutiam-lhe, decerto, a sorte. Mas os fios
largados pelo chão denunciavam que não tinha nunca chegado a ser útil e tornavam-no
manifestamente inofensivo. Era inútil perder tempo a derrubar aquilo pois não
servia para nada ao inimigo. Era apenas um pau levantado no chão. À cautela
atiraram uma rajada para o alto oculto no densíssimo nevoeiro.
O pobre Manel
aí, confessemos, teve sorte. Nada lhe acertou. As balas rasaram-lhe o corpo,
mais nada. E mordeu-se todo com medo de morrer. Mas para sua muita sorte os
inimigos desistiram. Todo o material largado no chão – fio, pás, enxadas…- indicava
a fuga. E havia que avançar, avançar sempre.
- Weiter gehen!
Isso mesmo. Adiante.
E lá seguiram.
Depois vieram
os carros, e o chão tremia debaixo dos seus pés. Perdão. O chão tremia; mas ele
já só mal o podia sentir, agarrado que continuava ao grosso madeiro, que
vibrava a cada rodado que passava. Porque os pés, suspensos e frios, já tinham
congelado na espera.
Demoraram uma
hora a passar. Ou mais. Seriam duas. Ele nunca soube.
Depois,
devagar, os gritos e estampidos foram-se perdendo na distância.
Seria
possível? Depois de deixar passsar uma margem de segurança sem ouvir mais nada,
o seu coração ouvia-se mais alto que o silêncio.
O nevoeiro não
levantava. A cinco metros já ninguém via nada. Só os postes tinham dez ou mais
de altura. Ele próprio não via o chão.
Deu ainda mais
uma e outra margem de segurança. A tremer todo, lá se arriscou a descer. Devagar,
espreitando sempre.
O exército
alemão passara.
Havia no ar um
cheiro imenso a pólvora e a morte.
Estava
completamente só.
Exausto.
Borrado de medo. Enregelado. Faminto. A tremer. Mas vivo.
Acontece que
na aldeia nada se sabia. E se, de vez em quando, aparecia uma carta E,
normalmente, para desgraça da família, eram sempre más notícias. Assim, calhou,
em certo dia, a minha avó receber do Ministério do Exército – ou da Guerra,
como então se chamava – a sibilina e curva notícia.
O seu marido
fora dado como desaparecido em
combate. Era assim que se dizia a morte.
O choque foi
brutal. Chorou-se a desgraça e receou-se pela vida futura. O pai e o sustento
iam faltar. Como sobreviver, pobre mulher, viúva, e com dois filhos para sustentar?
Pos-se luto e
carpiram-se noites de uma tristeza profunda. Uma mágoa, assim, sem ter corpo
para funeral é uma mágoa especialmente funda, estúpida e perplexa. Não se
percebe como terminou tudo e, no entanto, tudo terminou. Lá longe, sem se saber
como, nem porquê.
Aliás há um
eufemismo imenso na terminologia militar, quando trata da morte de seus filhos.
Se não há corpo, o que se regista estatisticamente é um desaparecimento. Não conta como morte. É uma sensação esquisita.
- Que é feito
de teu pai? …De teu irmão? De teu filho? Morreu?
- Não sei. Desapareceu!
Estranha e
violenta resposta, a que teriam de ensinar aos filhos.
Junto de um
amigo sargento, cujo conhecia um capitão em Lisboa, toda a família tentou
indagar novas do pobre Manuel Miguel. Nada. Tinha sido apanhado num ataque.
Esmagado pela frente inimiga. Desaparecido.
Mas afinal não
eram todos eles “desaparecidos em combate”
na sua maioria? Aquilo foi, relembre-se, a maior chacina humana sofrida pelo
exército português depois de Alcácer Quibir! Uma razia total. Um país inteiro
de luto.
A mãe Anita
nunca desistiu. Nunca quis acreditar.
Prometeu a
Nossa Senhora ir todos os dias à Igreja Velha, nem que fosse entrar e sair, se
o seu filho voltasse. E só Deus sabia como arriscava, pois o seu marido João Ralhão
não era homem para brincadeiras e tanpouco dado a assuntos clericais.
Enganou-o toda
a vida com uma caixa de fósforos, sempre novinha, que trazia escondida, num
bolso oculto duma das muitas saias que então se usavam.
Era o pretexto,
se ele desse conta de sua falta. E ele sabia.
- Onde andaste, mulher dum raio? - Perguntava
ele, falsamente furibundo.
- Olha, homem, fui comprar fósforos, que já
não tinha… – respondia ela, prontamente. Era mentira; e ele sabia.
Morreram os
dois com uma semana de intervalo.
O coração do
velho João não aguentou mais que esse tempo de saudades e morreu de fastio pelo
Mundo e amor de morte pela sua mulher.
História
bonita e verdadeira de meu sangue, acontecida bem antes de mim.
Mas voltemos à
história de seu filho, evoluindo, sem dicionário, em pátria alheia.
Passava o
tempo. O bom do Manuel, sem falar a língua e com medo dos ocupantes, arrastou-se
semanas pela França ocupada, numa vida furtiva e vadia, sem saber onde estava,
nem ver parceiros.
Voltar para
trás, nem pensar. Ia dar de caras com os alemães. Era a morte certa.
Aos poucos,
vindos daqui e dali, alguns outros colegas, todos famintos e esfarrapados,
começaram a juntar-se e, em dois meses, um grupo de insólitos soldados, cuja
roupa rota e suja apenas muito longinquamente se assemelhava já a um uniforme
militar, constituía um triste espectáculo de pobreza e mendicidade.
Alguns
franceses, embora muito a medo, iam sustentando o pobre grupo de maltrapilhos.
Por vezes trabalhavam pela comida em fazendas e quintas. Os olhos encovados e o
aspecto denunciavam-nos a qualquer olhar mais atento.
Foi isso que aconteceu,
largos meses depois, quando alguém foi avisar representantes do exército
português de que andariam homens extraviados em tal parte.
Regressaram
então aos respectivos Batalhões, campos de resistência que eram uma espécie de
babilónia de línguas e culturas. Os portugueses que haviam sobrado de tamanha
má sorte eram, apesar de tudo, os mais afortunados, de entre tantos milhares de
pobres compatriotas que morreram, sem saber bem por que causa combatiam…
Eram
sobreviventes. Estropiados, encolhidos, desorientados, doentes e feridos no
corpo e na alma e que, finalmente, iam sendo, aos poucos, repatriados para
casa.
O fracasso na consciência,
a fome no corpo, a vergonha na derrota e a morte na memória.
….
Quando chegou
à terra, o meu avô estava magro como um cão vadio.
Era, por outro
lado, um morto vivo, com tudo o que a
desagradável sensação lhe podia trazer.
- Oh Manel! Oh Homem! Mas então afinal tu não
tinhas morrido?! – Diziam.
Mas a alegria de
voltar foi tamanha que o morto vivo
em breve recuperou, com um tratamento intensivo à base de matanças de porco sucessivas,
celebrações de vida, enchidos de boa curtimenta, tinto de Alcorochel, sopas de
fressura, toucinhas de colorau e avantajadas migas.
O meu querido
avô – Manuel Miguel Chora.
De quem
herdei, ao que parece, as mãos, o vigor e a rotundidade. …Promovido a primeiro-cabo,
por serviços heróicos ao Exército Português na Grande Guerra de 1914-18!...
O tal herói que,
um dia – sem querer, nem saber bem como... – “Invadiu” sozinho o exército
inimigo, na célebre Batalha de La
Lys, num dia 9 de Abril de que nunca perderei memória! E por
ser tudo verdade aqui se passa, embora tardio, o competente Auto.
Seu neto, a bem da Nação,
PB