quarta-feira, 10 de maio de 2017

Os donos do Milagre

Os senhores de Tavares e de Andrade (nomes alterados por razões religiosamente compreensíveis) olharam-se e entenderam-se sem palavras. Estava combinado.
Marcaram o jantar de cerimónia, luxo e compromisso. A República alastrara como ideia e controlava o País. Havia que lutar contra tamanha e tão estrangeirada escumalha.
Famílias antigas e prestigiadas do Alto Ribatejo, - nos limites de uma Beira Litoral ainda longe do mar - possuíam, com efeito, extensas propriedades bravias e sem aproveitamento. Eram donos, entre ambas famílias, de mais de metade da Serra d’Aire; mas no mais belo e inútil de suas paisagens penhascosas e rudes, de terra vermelha e barrenta e pedra calcária. Pedra em tal quantidade que não se conseguia arar uma jeira de jeito sem embotar o ferro nelas ou que uma junta de bois não tropeçasse.
Havia, com efeito, de se fazer qualquer coisa. Rentabilizar tais perdidos sítios, recebidos de heranças de família e afinal, sem rendimento algum. Algo que atraísse gente para ali. Algo que pusesse tais áridas fazendas com valor e procura.
- Mas quê? – E cofiavam os fartos bigodes de lavradores abastados e donos da terra.
- Ah! Senhores, mas que haveria de ser?
O jantar decorreu entre baixelas de prata e criadagem muda, servindo. Elas de colarinhos engomados e avental rendado; eles de libré. No fim do solene e amigável repasto os homens afastaram-se um pouco, acendendo os charutos e vieram os sais para as Senhoras. Foi quando Dona Perpétua Simões de Andrade (nome alterado por razão religiosamente recomendável) suspirou e disse, entre a ironia e o desalento:
- “Pôr aqueles matos a render? Ai, minha Nossa Senhora! Acho que era preciso um milagre!” – e fungou elegantemente um pouco de rapé. E Dona Genoveva Tavares, embora um pouco obnubilada pelo ponche, aquiesceu, entre o arroto e a sonolência.
Num relâmpago, o Morgado Tavares olhou o Dr. Simões de Andrade, sobrecujo devotado esposo da sobrecuja chorosa dama.
Via-se que uma ideia lhe rebentara no crânio, como um estalo de inteligência.
- Um milagre! Caramba! Era isso mesmo! Mais que isso - uma fábrica de milagres!
Todos se debruçaram, alvoroçados. Um entusiasmo imenso se instalou na sala, antes soturna e pesada. E fizeram-se ao trabalho. Secretos preparos antecederam os contactos, escolhas e arranjos necessários a tão rocambolesca encenação.
O guião foi pensado e melhor combinado.
Sobrava um problema. Depois de escolhidos os protagonistas havia que anulá-los. Fazê-los desaparecer ou enclausurá-los. Para que nunca se percebesse o grau de intrujice, e a versão e fama das visões nunca fosse posta em causa.
Assim se cumpriu a história. Por artes maiores de menos clareza, apelos ao sacrifício e à mortificação, a pneumónica levou a uns e a clausura eterna viria a ser o destino da que sobrou. E as criaturas contaram tudo direitinho, na sua fé e candura infanto-pastoril.

Outro problema era o Bispo, provavelmente seduzido pelos republicanos, sabe-se lá. Reticente, o ingrato. E o próprio Patriarca, retorcendo o nariz.
Enfim. A história, embora com encenação amadora, intermitente e hesitante, acabou por pegar. O Estado e a Igreja acabariam por aceitar a utilidade de tal culto. A utilidade e sobretudo os dividendos.
Mais. Acrescentariam todos os ingredientes do mistério. Segredos. Milagres. Peregrinações. Liturgias bonitas. A dignidade dos templos e referencia histórica, – como se fosse um facto tão evidente como Mem Ramires haver ajudado à conquista de Santarém. Tendência para a partilha confusa do divino com o êxito bélico nunca nos faltou, desde que Afonso Henriques tivera as tais visões, antes de derrotar cinco reis mouros em Ourique.
Batota…acho eu, que não sou para aqui chamado. Assim era fácil.
E mesmo apócrifos e tergiversos, tais nobres e ostentados mistérios, entre a tragédia de uns, o amadorismo da montagem e dos protagonistas e o lucro evidente de outros, lá enredaram o Mundo.
Potenciando o saber do que se deseja para nosso próprio acreditar. Porque as nossas fraquezas sempre comandaram a nossa capacidade de temer. Alguém de superior que interceda por nós, é uma espécie de cunha no Além. Dá sempre jeito. Quem não tem medo da doença e da morte?
Saibamos pois aprender a acreditar. E ignoremos as incongruências. Tenhamos Fé.
Sim. Que linguagem era aquela tão metafórica e cuneiforme que ninguém entendia e um dos pobres nem sequer ouvia? Que figura existia afinal? Que luz emanava, e de onde? Em cima duma azinheira? A mãe de Deus, aqui?! Mas ela não estava em toda a parte, como pertence e é uso na sua ilustre e poderosa família? Porque não via a multidão absolutamente nada e apenas as febris crianças continuavam a clamar que sim senhor, estava ali uma Senhora de branco em cima duma azinheira?
E porquê branco? Eu, por exemplo, adoro amarelo!
Quero uma Virgem de amarelo, faz favor. Mesmo que seja a castíssima mãe de Deus, que raio, uma pessoa pode vestir cores bonitas! Como alertava Ela para os perigos do comunismo, se as aparições são em Maio de 1917 e a revolução bolchevique só seria em Outubro do mesmo ano? Como saber que premonições afectariam um Papa, e qual deles? E já agora, em que ano futuro a saber?
Cheira a Luís de Matos, em baratinho. E com um casting de Amadores da Berlenga de Baixo. Mas nós precisamos disso.
Mais importante que a Fé é a necessidade de precisar de Fé.
Sempre que passo a Fátima, no meio daquelas lojas de vendilhões do Templo, com o negócio da cera eternamente reciclada, com os bracinhos e as perninhas e as Nossas Senhorinhas fluorescentes, sinto no ar, de certo modo, um kitsch lamentável. Ex-líbris de um povo inculto e culturalmente pouco interessado no debate teosófico.
É isso. Não expliquem nada. Acreditem. E chega.
E como o negócio alastrou e é hoje mundial, caramba! Quem sou eu - apesar de local, vizinho, informado e conhecedor da história - contra o Mundo Católico inteiro, repleto dos seus hectoplasmas de inabalável Fé.
Enchamos então os olhos de arrepio e lágrimas ateias, ao vermos tanto acreditar.
Como eu gostava de estar convosco, almas simples e não perguntativas! Como eu gostaria de rezar ave marias descalço e acreditar que isso me resolvia todos os problemas!
Como é lindo ver uns milhares com velas, sem pensar no negócio. Como é lindo ver o acenar da multidão no eterno adeus!
Parabéns aos encenadores que ao longo dos anos têm melhorado o evento. Que lindas são as capas negras dos senhores da Opus Dei. Que dignidade e que perfis!
Que sinceras e belas são as lágrimas, na pele enrugada de velhices acreditantes, fotogénicas e puras. Juro que não brinco. A sério. Que pena tenho de ser racional!
Como me comove o vosso tão simples e elementar acto maior de acreditar!
Ficará por ali alguma coisa? Sempre que passo a Fátima abro a janela do carro e aspiro profundamente. Abro as mãos, tentando alcançar alguma tonelada de quilo-fé no agarrar do ar. Em vão. O acreditar é uma força incontrolável e telúrica. Reservada a gente que não quer saber da história de duas famílias ricas de Torres Novas e Ourém, e dos seus secretos e perversos interesses fundiários hoje plenamente satisfeitos.
Calculem. Naquela noite sem saber como, construíram, - a partir de um incauto e inocente desabafo, à sobremesa de um jantar de gala, nos alvores do século vinte - uma cidade.
E uma fé para o Mundo.
E eu eternamente condenado às portas da perdição, por conhecer a história e ter nascido ali ao pé da porta. Senhor perdoai-me, porque eu sei como se faz!
E se possível, bafeja-me com a tua proverbial tolerância. Preciso muito, podes crer. Sê generoso. Sou assim, eu sei, mas não faço por mal, acredita.
Cumprimentos cá da terra, humildemente,
Este teu servo,

António Pedro
In “Contos Anarquistas”, Ed Temas Originais, 2009

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